Creio que não existe nada de mais belo, de mais profundo, de mais simpático, de mais viril e de mais perfeito do que o Cristo; e eu digo a mim mesmo, com um amor cioso, que não existe e não pode existir. Mais do que isto: se alguém me provar que o Cristo está fora da verdade e que esta não se acha n'Ele, prefiro ficar com o Cristo a ficar com a verdade. (Dostoievski)

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26 de ago. de 2007

A Avó


A Avó

Quando era criança tinha medo daquela perna solta. Achava que ela, em um sopro, poderia sair pulando sozinha. Mas a avó era tão frágil, nem mesmo sua única perna, viva em seu corpo, sairia pulando sozinha. Ela não ouvia direito, não andava sem as muletas, era tão só, na sua fragilidade e ouvia, bem alto, os sons de um piano frágil, perdido em algum lugar do século dezoito.

Às vezes a avó cozinhava, fazia o que podia, equilibrando-se nas muletas. Macarronada, muito queijo em cima e molho de tomate. Eu era pequena e gostava tanto da louça azul; naqueles dias, eu sabia, podia tomar vinho. Tinto. E depois havia alegria, sorriso, muito sorriso, tudo era tão permanente, nunca ia mudar, eu sabia, tudo ficava tão alegre, tão alegre.

E a avó escrevia, poemas tão tristes que eu não entendia, falavam de um marido que eu não conheci, de uma dor que não era minha. Havia também uma empregada negra, que voltava do mercado com peixe embrulhado em jornal, ouvia as reclamações da avó e sorria, ah, dona orora... Também eu pedia dinheiro pra comprar picolé, de manhã, aquele sininho tocando, me seduzindo e me tirando da cama, sempre me dava umas moedinhas que trazia dentro de uma bolsinha, dentro de outra bolsa, que era grande e cabia tanta coisa que eu não sabia pra que servia. A avó tinha umas roupas engraçadas, uns sutiãs com espuma, umas camisolas beeem compridas, sapatos que cheiravam a guardado, eu era maluquinha e saía na rua com essas roupas, quase desaparecia dentro delas, uma vez fui até a padaria e comprei pão vestida assim, imagina só, ‘mas criança é assim mesmo’, então eu subia na árvore do quintal e passava pro telhado e a avó gritava ‘desce daí, menina, você vai se machucar, ora, veja!’. Ganhei uma bicicleta vermelha, de rodinhas, linda, a primeira. Minha avó dizia que eu era a neta querida e me contava histórias pra eu dormir, histórias de uma mulher, coitada, que tinha cobras no lugar dos cabelos, e as pessoas viravam pedra quando olhavam pra ela; outra que comia os filhos, sobrou só um, que virou deus. Eu morria de medo, mas a avó dormia ao lado, o que poderia acontecer? Também me lembro da minha primeira boneca, escrevi uma carta e pedi: a boneca chorava, era uma novidade. No Natal, como mágica, a boneca, em uma caixa enorme.

Só percebi o quanto amava minha avó quando a vi se contorcer de dor, na cama do hospital, amarrada como se fosse um bicho, assustada, sozinha. Quando a vi morrendo e, impotente, era grande e entendia tudo. Queria ser criança e não ficar tão desesperada. O que mais me doía era a dor que ela tinha, dentro, no fundo, como se a dor fosse parte de seu corpo. Seus órgãos eram o fígado, a dor, o coração, mais dor, o pulmão, o cansaço, o estômago, a solidão. Sempre foi assim, certamente na morte estaria assim, esperando o derradeiro sofrimento, por fim o último.

Ninguém pôde, jamais, entendê-la. Era, sim, de alma profunda e dor mais profunda ainda. A dor amadurece, ou enlouquece, ou escurece. E tudo, nela, era tão clássico como as suas músicas de piano. Seus discos, tantos, foram com algum mercenário, pobre coitado miserável sem dignidade, que não via neles a alma da avó, os sonhos, os amores. Suas fotos amareladas estão na minha parede. Bela, tão bela. Peço a Deus que me perdoe, gostaria hoje de reencontrá-la e só chorar, em seu colo, a saudade e a falta que ela me faz. Ó, Vó, tô me formando em Letras, lembra, você foi a única que me incentivou, desde o início. Olha, eu continuo escrevendo aquelas poesias. Outro dia fui na sua casa, lá no São Francisco. Foi quando a minha Tia também estava morrendo. Pedi licença à moça que me recebeu. Fui ao seu quarto. Sentei ali, no chão, perto de onde você deixava a perna. E chorei.

Mayalu Felix
São Luís, 05/12/94

2 comentários:

Rose disse...

Nossa! Foi lindo!Esse texto me faz pensar sobre como a vida é breve para quem não sabe aprecia-la! Como algumas pessoas podem deixar marcas tão gostosas... Lembrei-me da minha queridíssima vó que graças a Deus está comigo. Senti uma vontade de dizer o quanto a amo.

Maya Felix disse...

Obrigada! Diga a ela o quanto você a ama.

Maya

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