Comedores de si
Na sua histórica voracidade, querendo consumir tanto quanto os mais ricos do mundo, os ricos brasileiros tanto se apropriaram do que deveriam distribuir que terminaram comendo a eles próprios.
Os jornais brasileiros disputam leitores, no lugar de apoiarem o aumento geral no número de leitores, o que poderia ser feito por meio de programas educacionais que permitissem a todos os jovens concluir o ensino médio com qualidade. Se tivesse escolas no padrão das melhores do mundo, para todos os seus jovens até o final do segundo grau, o Brasil multiplicaria em até seis vezes o número de leitores e de compradores: três vezes pelo aumento no número de graduados e duas vezes mais pela qualidade conseguida. Apesar disso, a disputa continua sendo entre os jornais, devorando-se para atrair os poucos leitores da elite que estudou.
Os hotéis brasileiros se digladiam para elevar a ocupação, sem considerar o quanto aumentaria o número de turistas se o Brasil não tivesse dengue nem outras doenças, violência urbana, se nossos jovens fossem fluentes em línguas estrangeiras e tivessem a eficiência adquirida pela educação. Mas, os donos de hotéis não consideram que o investimento público em educação traria benefício para o seu setor. São capazes de gastar milhões com lobistas para conseguir leis que lhes dêem subsídios fiscais, exigem que os governos desviem recursos financeiros da educação para a infra-estrutura em uma praia. Gastam dinheiro para cercar suas instalações e pagam fortunas com segurança privada. Dão imensos descontos para atrair clientes de concorrentes, mas não fazem o menor esforço para que haja investimentos sociais que, melhorando a cidade, atrairiam novos turistas. Preferem comer a própria renda, no lugar de somar renda através da sua distribuição.
As indústrias brasileiras disputam mercado, subsídios, reivindicam gastos públicos em infra-estrutura, sem preocupação em aumentar o tamanho do mercado nacional. Quando suas vendas caem, pedem apoio aos governos para reduzir os impostos ou para subsidiar as exportações, e nada de apoiar um programa amplo de emprego que fortaleceria a demanda nacional. Preferem se comer no banquete da concorrência a criar um mercado interno dinâmico. Prisioneiros do corporativismo, os empresários brasileiros se comportam como uma pessoa que desejasse o estúpido privilégio de ser a única a falar um idioma, no lugar de perceber as vantagens de usufruir a disseminação do seu saber.
Os ricos brasileiros preferem ser prisioneiros de engarrafamentos dentro de um bonito carro privado a implantar e usar um eficiente sistema de transporte coletivo. Comem o único recurso realmente escasso que é o tempo de vida, contentes ao consumir a vida dentro de seus carros. Ao beneficiarem-se da concentração da renda, os ricos brasileiros criaram uma sociedade violenta que assalta e mata a eles próprios e seus filhos. A elite econômica do Brasil poderia ter uma vida média mais longa e melhor se o Brasil fosse mais justo. Mas ela prefere comer anos de vida de seus jovens assaltados e seqüestrados, comer parte da qualidade de vida que teriam, do que distribuir essa qualidade com a população.
Quando fazem suas casas, os brasileiros com dinheiro gastam fortunas em muralhas e sistemas de proteção ou em vigilância privada. Preferem gastar em atividades que apenas evitam perdas, do que aumentar o conforto e a qualidade de vida através da distribuição dos benefícios do progresso. Só em segurança privada, a elite rica brasileira desperdiça quase R$ 20 bilhões por ano, valor que permitiria aumentar substancialmente os salários dos professores, enriquecendo toda a sociedade e tornando-a mais pacífica. Mas eles preferem se consumir, prisioneiros em seus condomínios, impossibilitados de passear em suas cidades, cercados por guarda-costas.
Cada vez que fazem viagens internacionais, os ricos brasileiros se consomem na vergonha de serem reconhecidos como assassinos de crianças, incendiários de florestas, devedores internacionais, concentradores de renda, donos da oitava potência econômica e habitantes da penúltima sociedade do mundo em distribuição de renda; se consomem na vergonha de serem vistos como os ricos turistas de um país de favelas, crianças sem escolas e com doenças endêmicas.
Ao abandonar suas crianças, a elite econômica brasileira está comendo o seu futuro. Quantos gênios mundiais são trucidados ao longo de seus primeiros 15 anos, pela falta de comida ou de higiene, pela falta de atendimento médico e educação de qualidade? Pela falta de educação de nossa população e pelo abandono das atividades culturais, a elite econômica brasileira comeu até mesmo a própria alma. A alma que há no idioma conspurcado, nas artes relegadas, nas tradições desfeitas todos os dias pela ambição desvairada da imitação do que vem do estrangeiro.
Ao destruir florestas, sujar águas, poluir o ar, depredar reservas minerais, os ricos brasileiros e seus governantes comem o próprio futuro. Ao excluir uma parte da população, a elite econômica brasileira afundou o seu projeto, consumiu-se.
Surpreendente é como custaria pouco à elite superar o quadro de pobreza no Brasil. Diferente de países pobres, sem recursos, com apenas 10% da receita do setor público brasileiro, gastos com as prioridades certas, sem corrupção nem desvios, em 15 ou 20 anos o Brasil teria incluído toda sua população no acesso aos bens e serviços essenciais. Mas, nos próximos meses os orçamentos da União, dos Estados, Municípios e Distrito Federal serão elaborados olhando-se as demandas dos incluídos, desprezando as necessidades dos pobres. Egoísta e estupidamente, os ricos continuaram se comendo.
Depois de 500 anos de história, no lugar de abandonar a antropofagia de nossos antepassados, que comiam os estrangeiros que lhes traziam bugigangas, a elite brasileira faz pior: come-se a si própria para poder comprar as bugigangas dos estrangeiros de hoje. E ainda chama de selvagens estúpidos os sábios índios de antigamente. Eles devoravam os de fora; os ricos de hoje devoram a si próprios, como comedores de si.
(*) Senador pelo DF, professor da UnB e ex-governador do Distrito Federal. Escreveu, entre outros livros, Admirável Mundo Atual, pela Editora Geração.
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