O gato apareceu de repente na montanha. Era um pobre bichinho débil, que miava silêncio. Preto, parecia cinzento -- de tão sujo. E, além de sujo, maltratado, com um olho desfazendo-se em gelatina, e uma orelha empapada de sangue. Olhou para mim tristemente, como nós às vezes olhamos para Deus. E eu, certamente, queria ajudá-lo. Mas então vi como aquele caminho deserto se fazia subitamente povoado; o espírito das superstições dizia-me: "Olha que é um gato preto!" E o espírito da ciência murmurava-me: "Está cheio de parasitas, que te infestarão!" E esse vil espírito prático da era contemporânea aparteava: "Ademais, como podes ajudar, se estás num caminho deserto e sem recursos, onde não se avista nem um teto nem um veículo?" E só o espírito do amor segredava tímido: "Toma-o nas mãos e leva-o contigo! Verás que, no teu colo, seus olhinhos lacrimosos se fecharão, adormecidos; sua fome se esquecerá, suas feridas fecharão..." Mas o espírito do amor segreda com tanta timidez!
Pela montanha deserta, descíamos os dois, e subia o vento. Pobre gatinho preto, de cauda arrepiada como uma escova de lavar frascos! Manquejava também de um pé. Tão ralo tinha o pêlo que se lhe viam luzir as pulgas sobre os arcos das costelas. Na orelha machucada, o sangue secara-lhe como uma florzinha vermelha, muito escura.
Tão grande era sua urgência de socorro, que, embora trôpego, pequenino, doente, às vezes caminhava mais depressa do que eu. Ia esperar-me adiante, e levantava para os meus olhos os seus sofredores e o vazio miado, que era, a cada instante, como seu último sopro.
Mas, quando me via chegar, punha de lado sua fadiga e o seu descanso, e recomeçava o caminho, com uma espécie de fé sempre renovada de peregrino que se dirige ao lugar da salvação.
Na montanha, porém, não havia salvação nenhuma para quem padecesse de fome ou sede. A assembléia dos espíritos que me rodeavam buscava pôr-se de acordo, sem satisfação: as pulgas eram inegáveis -- dizia o espírito científico; o da superstição contradizia-se, de tão rico: às vezes, os gatos pretos dão sorte...; o espírito prático, o vil espírito do tempo, mostrava-me com uma clareza de relatório oficial que gasolina não existia, e a primeira venda devia estar, tanto para um lado, como para o outro, a um bom quilômetro, pelo menos. Só o espírito do amor segredava que tudo isso eram conjecturas idiotas, e que devia tomar nas mãos o pobre bichinho abandonado e levá-lo sobre o calor do meu peito até um lugar qualquer onde o sentisse, afinal, protegido e consolado.
E o gatinho trotava, ora atrás de mim, ora na minha frente. Parecia impossível que pudesse pular assim, tão magrinho, tão seco, tão lastimoso. Mas pulava. Se não fosse o aspecto que tinha, dir-se-ia que brincava, que brincava como um cavalinho caprichoso num circo de elfos. Umas duas vezes prendeu a perna no ralo da sarjeta. Daí em diante, fez-se mais cauteloso, evitando-as, quando as encontrava. E isso dava graça à companhia, como quando se descobrem as novidades de uma criança. Mal, porém, se reparava no seu esqueleto no ofego de seu tórax, e naquela umidade de seus olhinhos nublados, vinha um aperto ao coração -- e o grande céu, a verde floresta, o ouro do Sol derramando-se pela estrada, o mundo e as criaturas tornavam-se enigmáticos, ferozes e inúteis.
O espírito do amor segredava-me, cada vez mais tímido: "Vê como te acompanha. Como poderás dormir tranqüila sem teres socorrido o miserável que pediu o teu auxílio?" E o espírito da superstição murmurava: "Isto é para que não te esqueças que deixaste de ser caridosa, um dia. Aqui anda um aviso do ultramundo, sob a forma de um gato preto!" E o espírito científico replicava com uma insolência de dezoito anos: "Qual ultramundo! Isto é apenas um gato sem casa, maltratado pelos vadios, e que vai atrás de ti por instinto, procurando alimento e sossego". E o tal espírito prático se arreliava: "Onde estão os hospitais, para os bichanos que ninguém quer? Que há de fazer uma pessoa num caso destes? As pulgas estão ali, evidentes; a gasolina positivamente não está em lugar nenhum. Ninguém pode andar sempre com um sanduíche no bolso e uma garrafa de leite embaixo do braço... E ainda esta carga de preconceitos morais!..." O espírito do amor segredava entristecido: "Não deixes teu coração endurecer com o que estás ouvindo... Faze alguma coisa por este pobre animal que te segue arquejante. Lembra-te se algum dia foste atrás de alguma coisa que fugisse, fugisse... reflete que algum dia poderás ir..." E volvia o espírito científico: "Mas um gato, afinal de contas, não é gente. E o sofrimento de um gato não é o sofrimento humano..." E o espírito do amor suavemente insistia: "Tudo é sofrimento só, de alto a baixo, na criação. Compadece-te desse que te acompanha, pequena coisa que o destino pôs no teu caminho, problema que o mundo inteiro está vendo como resolverás..."
Então, no meio dos espíritos sentei-me. E o gato parou diante de mim, com a hirta cauda para o lado, uma orelhinha murcha, e outra em pé. Seus olhos chorosos não tinham cor humana: puro choro. E sua boca pálida arreganhou-se num miado sem som: puro bocejo. Aquietou-se, mirando-me. E agora um velhinho muito velho, emalhado em lã cinzenta, lacrimejando de velhice e de experiência. Observava-me, sem dizer mais nada, sem pedir nada. Sua sombra não media um palmo; minha sombra não media um metro. A sombra das árvores era imensa e balançava-se no chão, misturando estrelinhas de ouro. Trinavam pássaros, alto e longe. A montanha subia, subia. Quanto caminho andado! E aquele pobre bichinho descera-o todo atrás de mim, tão magrinho, tão infeliz, alternando as perninhas trôpegas, e chamando-me com sua voz desaparecida.
Por que não nascem entre as pedras arroios de leite para os gatinhos abandonados? Ah! Irmão Francisco, os lírios andam vestidos de seda, e os passarinhos por toda parte encontram grão que os sustente, mas os gatinhos, bem vês, não têm rato com que se distraiam e o transeunte humano nem o pode socorrer nem explicar...
Passará talvez um leiteiro, com algum carrinho. Virá batendo uma sineta melodiosa como um anúncio de festa. E eu lhe direi: vende-me meio litro de leite para este bichinho abandonado... E o leiteiro será como um pastor antigo, que sobe para a sua serra onde tem ovelhas peludas e mansas, e me dará leite e queijinhos brancos e tenros, que todos comeremos à sombra das árvores, numa intimidade casta de écloga. O gatinho se lamberá todo com uma língua novinha, rósea que nem coral, e sorrirá agradecendo, e terá forças para trincar aquelas pulgas que passam como miçangas pelas suas costelas, e depois, limpo e refeito, brincará, para vermos, de pegar a sua sombra, de saltar ao tronco das árvores ou de morder a ponta da sua própria cauda.
E o leiteiro dirá: "Ide, senhora, que o levo comigo, para entreter os meninos da minha granja." E as árvores se inclinarão, cheias de pássaros e flores, e o gatinho irá pulando serra acima, enquanto o leiteiro, para o divertir, cantará uma cantiga engraçada sobre a vida das ratazanas...
Mas o leiteiro não aparecia. Pensei que ele acabasse por adormecer ali sentado, pois seus olhos ficavam cada vez mais pegajosos e seu focinho de ancião freqüentador de arquivos tomava um ar cada vez mais resignado e desistido. E eu lhe dizia: "Meu amigo, não sei qual é a venda mais longe: se a lá de cima, se a lá de baixo... Como vais resistir a caminhar mais do dobro do que até aqui andaste?"
E o espírito do amor implorava: "Toma-o no teu colo!" E lembrei-me da amiga que apanhou um gatinho assim à porta do cinema e levou-o para a casa de chá, escandalizando todas as senhoras enchapeladas que comiam sem fome, carregadas de balangandãs. E os espelhos em redor viram descer para o gatinho um doce das mil e uma noites, pura nata e massa folhada, onde a fome do desgraçado se perdia num delírio de suavidades brancas, num êxtase de manteiga e baunilha.
Mas nenhum pássaro trouxe no bico o milagre necessário ao gatinho preto. De nenhuma árvore caiu esse milagre suspirado. Pedras, Sol, troncos, formigas. Nem água! -- nem água brilhava em nenhuma rocha, nem se deixava ao menos ouvir no segredo das folhas ou das areias.
Então, o gatinho veio tocar-me os pés com humildade. Isto é o que mais me custa lembrar: a meiguice com que inclinava a cabecinha doente nos meus sapatos, como a perguntar-lhes: "Por que pararam? Levem-me a algum lugar! Não vêem que estou tão precisado, tão mortinho de sede e fome?"
E levantei-me e recomecei a andar -- triste pelo gatinho como pela infelicidade de um povo ou de um parente. E sem esperança de nada. E fui andando. E ele atrás de mim. E fazia cabriolas. E queria andar tão depressa, que até atrapalhava as quatro perninhas. E ia de olhos no chão, disciplinado, com um ar de funcionário submisso, mas de repente virava menino travesso, e dava pulinhos, logo perdia as forças e levantava a cabeça com boca suplicante e olhos dissolvidos.
Nessa altura é que nos aconteceu uma coisa extraordinária: vinha subindo a montanha uma pessoa. E o pobre bichinho, que devia estar zonzo de canseira, confundiu os pés que subiam com os que desciam, e passou a acompanhar o transeunte inesperado.
Veio-me então a saudade de perdê-lo. E a melancolia de lhe não ter dado nenhuma ajuda. Perguntei aos espíritos que me cercavam o que devia fazer. E um deles -- não sei qual -- me respondeu que talvez fosse melhor deixá-lo com seu destino. (Devia ser o espírito prático, que é o mais covarde...) E arrazoava: o passante podia levar consigo o sanduíche que me faltava... (Mas o espírito do amor, esse eu bem sei que ia lá chorando, dentro de mim, desconvencido e inconsolável.)
E agora tenho a lembrança da montanha, poderosa, bela, virente, e, em seu flanco, a imagem do gatinho triste, como coisa para toda a vida.
Primeiro, pensei que aquilo era apenas uma aventura curiosa, que esqueceria ao chegar à cidade. E parecia estar esquecido. Mas esta noite sonhei com ele. Sonhei com o gatinho que já deve ter morrido, que morreu certamente àquela tarde mesma. E disse para a sua imagem: "Mas eu te amei antes de morreres..." Depois, achei a frase idiota. Nem ao menos original. Parecia a última frase de Otelo.
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