Lingüiças calabresas
-- Alô?
-- Quem fala?
-- Quem quer saber?
-- Quem é, por favor?
-- Diga você quem é.
-- O Dr. Márcio está?
-- Quem quer saber?
-- Está ou não está?
-- Depende.
-- Depende do quê?
-- De quem quer saber.
-- É o...
-- Espere! Qual é o assunto?
-- O assunto é com o Dr. Márcio.
-- Pode dizer pra mim.
-- Mas quem é você?
-- Primeiro me diga quem é você.
-- Aqui é o...
-- Não use seu nome verdadeiro!
-- Por quê?
-- Use um pseudônimo.
-- Que história é essa? Por que pseudônimo?
-- Podem estar gravando.
-- Quem?
-- E eu sei?
-- Dr. Márcio... é o senhor?
-- Não. Meu nome é... deixa ver... Balduíno.
-- Você se chama Balduíno?
-- Claro que não. É pseudônimo. Invente um também.
-- Isto é ruidículo.
-- Eu vou desligar.
-- Está bem! Frajola.
-- "Frajola"?!
-- Jaime! Jaime!
-- Muito bem, Jaime. E qual é o assunto?
-- É com o Dr. Márcio.
-- Pode me dizer que eu transmito pro Márcio. Que também é um pseudônimo, claro.
-- "Márcio" não é o nome do Dr. Márcio?
-- Depende do assunto.
-- É sobre o pacote que ele encomendou do...
-- Espere! Não fale assim tão claramente. Use linguagem figurada.
-- Linguagem figurada?
-- É. Em vez de pacote, diga coisa. Não, "coisa" pode ser mal interpretada. Diga "encomenda".
-- A encomenda que ele encomendou do...
-- Não diga o nome!
-- Por quê?!
-- Não queremos incriminar ninguém.
-- Mas não há crime algum!
-- Isto vai depender da interpretação. Esta conversa já está pra lá de suspeita.
-- Eu só queria avisar ao Dr. Márcio que as lingüiças chegaram.
-- As lingüiças. Boa, boa.O pseudônimo de "encomenda".
-- Não, são lingüiças mesmo.
-- Um pacote de lingüiças?
-- É. Calabresas. Que o Dr. Márcio encomendou do... De alguém.
-- Já entendi! Já entendi tudo. Você é que está gravando este telefonema. Esta conversa toda é para me incriminar. Ou incriminar o Márcio. Pseudônimos. Linguagem figurada... Já vi tudo! Amanhã ela sai no Jornal Nacional e é óbvio que "pacote de lingüiças calabresas" vai parecer código.
-- Mas foi você que sugeriu os pseudônimos, a linguagem figurada, o...
-- Arrá! Vocês não me pegam. Nego tudo. Aliás, nem sou eu falando. Provem que sou eu.
-- Quer saber de uma coisa, seu Balduíno? Pra mim chega. O recado está dado. As lingüiças chegaram. Passe bem.
-- Espere. Agora me lembro. As lingüiças que eu encomendei. Calabresas. Claro, claro. Me lembrei.
-- É o senhor, Dr. Márcio?
-- É. Claro, claro, sou eu. Desculpe. Sabe como é. A gente vai ficando meio paranóico...
***
Crônica de Luis Fernando Veríssimo, extraída do jornal O Estado de São Paulo, p. D18, Cultura, 17/06/2007.
Nenhum comentário:
Postar um comentário