Minha filha deixou de viver e não pôde ser criança, diz mãe de vítima
Fernanda Sucupira – Carta Maior*
Fernanda Sucupira – Carta Maior*
RECIFE – Aos quatro anos, Juliene contou à sua mãe que estava sendo abusada sexualmente por Seu Olavo, um senhor de sessenta anos que morava perto da casa de sua avó paterna, na periferia de Recife, capital de Pernambuco, para onde ela ia todos os sábados.
Lourdes, dona-de-casa e manicure nos finais de semana, nunca tinha ouvido falar nesse tipo de crime, mas tomou todas as providências para punir o culpado, iniciando uma peregrinação que durou oito anos. Só na delegacia, o caso ficou parado por três anos. Leia a seguir o depoimento da mãe de Juliene:
“Um certo dia, Juliene chegou e disse: “mainha, a senhora me ajuda?”, e eu disse que sim, quis saber o que ela queria contar. Aí ela disse: “seu Olavo quer me beijar na boca e eu não quero, a senhora diz pra mulher dele?”. E começou a contar toda a história. Eu sempre via esse senhor acompanhado de muitas crianças e sabia que ele dava dinheiro e doces para um menino e uma menina, de quem ele era padrinho, quando eles iam ao quartinho de ferramentas com ele. Eu achava aquilo esquisito. Ele também costumava dar coisas para Juliene, pirulito, uva, maçã, só que eu não sabia. Minha sogra é que estava a par disso, mas era aquela coisa, o bom vizinho, ninguém desconfiou.
No mesmo dia eu procurei a delegacia, totalmente desesperada. Fui chamada para fazer uma acareação, com minha menina e seu Olavo, uma coisa que hoje eu sei que foi errado. Ela não conseguiu falar porque não tinha condições. Passaram-se três anos com meu processo dentro da delegacia, sem mexer, sem mandar para o juizado. Fui lá várias vezes e eles diziam que estavam faltando documentos. Eu não tive apoio nenhum da família do meu esposo, porque era um vizinho que morava lá há mais de quarenta anos.
Eu já não agüentava mais e procurei a Justiça mesmo, fui na vara especializada de crimes contra a criança e o adolescente. Eu cheguei lá muito abalada e pedi por tudo no mundo que a promotora me atendesse. Isso já era 2001, minha menina já estava com quase sete anos. O homem estava para cima e para baixo, continuava abusando, inclusive com essa menina e o irmão. Ele tinha uma sobrinha pequena morando na casa dele, que ele cuidava. Falei tudo isso para a promotora e ela me mandou procurar o Cendhec [Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social, que oferece acompanhamento jurídico]. Ela se sensibilizou com a situação e daí começou o andamento.
Um ano depois, minha menina foi chamada para ser ouvida pelo juiz. Ela não conseguiu falar porque nesse dia o abusador estava lá, foi ouvido no mesmo dia. Além de ela estar nervosa, o juiz perguntava palavras que não existe perguntar para uma criança: “pênis”, “penetração”, “ânus”, “vagina”. Minha menina não sabia o que era isso, a gente falava “pipiu”, “peru”, mas “pênis”? O juiz não tinha sensibilidade nenhuma, e ela só dizia “eu não me lembro”. Ela não entendia as perguntas. Tinha seis pessoas dentro da sala, o juiz era homem e minha menina não teve acompanhamento psicológico nenhum. Além de ser uma sala fria, sem preparação, muito adulto tem medo de estar numa situação daquela.
Um certo dia encontrei Seu Olavo no meio da rua, ele me agrediu, disse palavras obscenas, debochou, porque realmente não tinha acontecido nada com ele e ele tinha certeza de que não ia acontecer. A comunidade continuou protegendo ele porque achava que o velhinho não ia fazer uma coisa dessas, um homem tão bom, que cuidava das crianças. A gente foi na delegacia especializada pedir para ele ser preso, fomos falar com o juiz, fui super mal atendida. Ele passou um mês preso na época, depois foi solto. O advogado dele era uma pessoa envolvida com gente de gangue, com políticos muito próximos da comunidade. Para ele estava tudo muito bom, eu é que tive que me afastar. Eu e minha filha tínhamos medo de andar na rua, se encontrasse com Seu Olavo, Juliene entrava em pânico porque ele ameaçava matar meu esposo e eu caso ela contasse pra gente.
A primeira sentença saiu em 2003, o juiz absolveu por falta de provas. Ele desconsiderou o laudo da escola, desconsiderou o laudo médico da pediatra dela, o laudo da neurologista, da psicóloga da Justiça. Falei com a psicóloga e ela disse que só faltou mesmo Seu Olavo dizer que fez, todo o histórico dele era de que tinha abusado dela. Eu consegui o testemunho de uma outra menina que ele abusava, Jéssica, aquela que eu via no quartinho com o irmão. Essa absolvição me deu a sensação de total impunidade. Depois de tudo que tivemos que passar, me senti totalmente desamparada e pensei que lutei tanto para morrer na praia. Tudo que eu tinha passado, fiz minha filha se expor tanto, a vontade é não falar mais nesse assunto, e ela teve que falar para o delegado, para o escrivão, para um monte de gente. E eu vendo minha filha repetir tudo, ela não dormia, gritava, chorava porque tinha que contar isso várias vezes para todo mundo, ter um monte de adultos fazendo um monte de perguntas.
Quando teve essa primeira sentença, eu desmoronei mesmo, pensei em desistir. A vontade era de correr atrás e matar o cabra. Pensei muitas vezes em fazer isso, não fiz porque depois eu pensava que na Justiça do Brasil se eu tivesse feito isso estaria presa agora e minha filha estaria totalmente desamparada, com esses problemas psicológicos seríssimos. E ele estaria morto. Eu não queria matar para ninguém saber não, queria que ele fosse preso que era para a sociedade ver que ele fez e que de uma maneira ou de outra isso dá cadeia. E até outros abusadores também verem.
Para o juiz, Seu Olavo não tinha feito nada, só porque minha filha disse que não sabia. Ela conseguiu falar tudo para a psicóloga, mas o juiz queria que ela dissesse isso a ele, sendo que da forma de ele falar, até um adulto tem medo. Além de ter os laudos, que era a única forma de se provar o abuso, Jéssica falou tudo o que ele fazia, toda forma de abusar minha menina ele abusava dela também. Mas o juiz ainda achou que não tinha provas. Para muita gente, para a própria sociedade, para o próprio juiz desse caso, tinha que ser um estupro, tinha que sangrar, tinha que romper o hímen. Minha menina não teve nada que provasse no corpo dela porque quando eu fui fazer o laudo do IML já tinha mais de 15 dias.
Minha família ficou totalmente revoltada, dizendo que eu parasse por aí, que eu só estava arriscando minha vida. Só que eu nunca tive vontade de esquecer porque eu sabia que tinha uma criança que vivia com ele lá. A minha vontade era de chegar lá e esganar o juiz ou então ter oportunidade de sentar com ele e perguntar para ele o que ele queria, porque o que ele quisesse eu iria atrás. Juliene na época chegou a entender o que estava se passando, ela já tinha feito todo um tratamento psicológico e recebido alta, mas por conta disso voltou tudo novamente. A gente tinha medo dele, ele vivia na comunidade como qualquer outra pessoa, continuava com as crianças da rua.
Até que o Cendhec recorreu e foi para os desembargadores. No Tribunal de Justiça, em 2004, ele foi condenado a 12 anos, depois ele recorreu e conseguiu reduzir para seis. Passaram-se quase dois meses, com o pessoal do Cendhec em cima, para esse papel poder chegar na delegacia de busca e apreensão, um simples papel. Eu fui lá fazer um apelo para ele ser preso, implorei. Eles estavam com a viatura lá, pediram uma foto do homem, mas eu não tinha. Eu fui junto com os quatro policiais dentro do carro, tive que ir porque daqui que eles conseguissem uma foto desse homem, ele já teria ido embora. Eu tive que ir com o pessoal todo armado, tive que arriscar a minha vida para conseguir isso. Mas eu não queria saber de nada, queria que ele fosse preso porque eu queria mostrar para a sociedade e para as pessoas que aquele velhinho, que já estava com setenta anos, fez aquilo com a minha filha e continuava a fazer aquilo no bairro.
Quando a gente chegou, ele estava embaixo de uma barreira alta, tinha uma menina em cima, com as pernas abertas, ele embaixo olhando, e tinha mais de dez crianças no quintal dele. Um dos policiais ficou revoltado porque viu que estava acontecendo um abuso na frente de todo mundo.
Eu senti que, por conta dessa condenação, minha filha mudou também. Ela conseguiu dormir, ser uma pessoa melhor porque se sentiu vencedora, se sentiu acreditada. Durante oito anos, ela deixou de viver, não pôde ser criança. Muitas vezes eu não consigo lembrar da infância da minha filha, de ela dançar, brincar. Dos quatro aos doze anos dela a única coisa que a gente podia falar dentro de casa era sobre esse abuso, a gente vivia em torno disso. Minha filha teve que se afastar dos avós, não podia andar na rua, ir no aniversário de ninguém por perto. Durante esse tempo, minha filha não dormia, não brincava, não tinha relação com outras crianças, ela estava passando pelo momento mais difícil da vida dela. Isso machuca muito, essa demora da Justiça. Eu lutei, eu dediquei a minha vida, não sabia mais o que era marido, o que era casa, o que era nada. Já faz dez anos que isso aconteceu, mas ninguém esquece jamais, eu sofri muito, cheguei a engordar vinte quilos, por conta de depressão. O abuso destrói totalmente o ambiente familiar e a vida de qualquer ser humano.
Mas eu ainda não estou satisfeita. Ele foi preso, passou dois anos e agora há pouco eu soube que ele foi solto, está no regime semi-aberto porque já cumpriu um terço da pena. Isso não é justiça. Por que eu passei oito anos da minha vida buscando provas para mostrar para o juiz que ele era um abusador, para conseguir botar esse homem na cadeia e ele passa dois anos preso? Ele não vai deixar de abusar. Eu ando amedrontada porque não sei do que esse homem é capaz. Como fica a minha segurança, da minha filha? O que foi que a Justiça fez? Fez nada. O que foi passar dois anos lá preso, sendo que ele não teve nenhum tratamento lá dentro?
As pessoas têm medo de denunciar, de morrer, de ir para a Justiça, sabem que geralmente não dá em nada. De repente a gente vê todo esse lado e, se não tiver força e coragem, não vai atrás não”.
(Todos os nomes são fictícios)
*O projeto que deu origem a esta reportagem foi vencedor da categoria mídia alternativa do 3º Concurso Tim Lopes para Projetos de Investigação Jornalística, realizado pela Andi e Instituto WCF-Brasil, com o apoio do Unicef, da OIT, da Fenaj e da Abraji.
Fonte: Site Agência Carta Maior.
2 comentários:
Como profissional da área jurídica, especialmente criminal, fiquei revoltada com descaso da justiça Pernambucana! Não é possível que em um mesmo país existam tantos códigos penais diferentes! Fico feliz que em alguns Estados, estas questões sejam tratadas de forma diferente.
No DF por exemplo, além de uma delegacia especializada, os juízes mesmo quando a vítima é maior retiram as pessoas da sala de audiencia, só permanecendo vítima, promotor, advogado, juiz e escrivão. É o mínimo que se pode fazer em casos como este. Além disto, é absurdo que ante uma prova técnica tão robusta o juiz da causa tenha ignorado e absolvido o acusado.
Em todo caso, o que podemos fazer de melhor é continuar a denunciar, não apenas os casos de abuso, mas também os de desídia do judiciário.
Concordo, Alê... Nãoi sou uma fera das leis, como você (é você, minha querida Alê França, da época da Metô?), mas acho essa nossa justiça cega, na maioria das vezes, na pior acepção da palavra.
Beijos!!!
Maya
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