O livro
Dos diversos instrumentos utilizados pelo homem, o mais espetacular é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio, o telescópio são extensões de sua visão; o telefone é a extensão de sua voz; em seguida, temos o arado e a espada, extensões de seu braço. O livro, porém, é outra coisa: o livro é uma extensão da sua memória e da imaginação.
Em César e Cleópatra, de Shaw, quando se fala da Biblioteca de Alexandria, diz-se que ela é a memória da humanidade. Isso é o livro. E é algo mais, também: a imaginação. Que é o nosso passado, se não uma série de sonhos? Que diferença pode haver entre recordar sonhos e recordar o passado?
Essa é a função exercida pelo livro.
Pensei, certa vez, em escrever uma história do livro. Não do ponto de vista físico. Os livros não me interessam fisicamente -- sobretudo os livros dos bibliófilos, que costumam ser volumosos --, mas, sim, as diversas valorações que deles se têm feito. Fui antecipado por Spengler, que em seu Decadência do Ocidente escreveu páginas preciosas a respeito do livro. Complementando com algumas observações de caráter pessoal, vou restringir-me ao que disse Spengler.
Os antigos não professavam nosso culto ao livro -- algo que me surpreende --, pois nele viam apenas um substituto da palavra oral. Aquela frase sempre citada -- scripta manent, verba volant -- não significa que a palavra oral seja efêmera, mas, sim, que a palavra escrita é algo duradouro e morto. Por outro lado, a palavra oral tem alguma coisa de fugaz, de inconstante. Fugaz e sagrado, como disse Platão. Todos os grandes mestres da humanidade foram, curiosamente, grandes mestres da oratória.
Analisemos o primeiro caso: Pitágoras. Sabemos que, deliberadamente, Pitágoras nada escreveu. Não escreveu porque não quis tornar-se prisioneiro da palavra escrita. Sentiu, sem dúvida, que a letra mata e o espírito vivifica -- o que, mais tarde, viria a ser citado na Bíblia. Ele deve ter sentido isso e não quis ficar preso à palavra escrita. Daí porque Aristóteles jamais fala de Pitágoras, mas dos pitagóricos. Diz-nos, por exemplo, que os pitagóricos professavam a crença, o dogma do eterno retorno, que muito mais tarde seria descoberto por Nietzsche. É a idéia do tempo cíclico, refutada por Santo Agostinho na Cidade de Deus. Santo Agostinho diz, em bela metáfora, que a cruz de Cristo nos salva do labirinto circular dos estóicos. Da idéia de um tempo cíclico aproximaram-se também Hume, Blanqui... e tantos outros.
Pitágoras não escreveu porque não quis. Queria que seu pensamento permanecesse vivo, após sua morte corporal, na mente de seus discípulos. Aqui se aplica aquela citação -- não sei grego, portanto falarei em latim: Magister dixit. Isso não significa que eles estivessem contidos pela palavra do mestre; pelo contrário, afirma a liberdade de continuarem pensando o pensamento inicial do mestre.
Não sabemos se com ele surgiu a doutrina do tempo cíclico, mas sabemos que seus discípulos a professavam. Pitágoras morre fisicamente, e eles, por uma espécie de transmigração -- disso Pitágoras teria gostado --, continuam pensando e repensando seu pensamento e, quando são repreendidos por dizerem algo novo, eles se refugiam naquela fórmula: "O mestre o disse" (Magister dixit).
Há, contudo, outros exemplos. Como aquele, muito importante, de Platão, que diz que os livros são como efígies -- deve ter pensado em esculturas ou em quadros -- que alguém pensa estarem vivas, mas, ao serem indagadas sobre alguma coisa, nada respondem. Então, para corrigir essa mudez dos livros, ele inventa o diálogo platônico. Quer dizer, Platão multiplica-se em muitos personagens: Sócrates, Górgias e os demais. Pode-se também supor que Platão desejava consolar-se pela morte de Sócrates, imaginando que este continuava vivo. Diante de qualquer problema, ele dizia a si mesmo: "Que teria dito Sócrates sobre isso?" de algum modo, portanto, tratava-se da imortalidade de Sócrates, que nada deixou escrito, mas foi um mestre da oratória.
De Cristo sabemos que escreveu uma única vez algumas palavras que a areia se encarregou de apagar. Ao que sabemos, nada mais escreveu. Buda foi igualmente um mestre da palavra oral -- suas prédicas permanecem. Logo deparamos com uma frase de Santo Anselmo: "Colocar um livro nas mãos de um ignorante é tão perigoso quanto colocar uma espada nas mãos de uma criança". Era assim que se pensava a respeito dos livros. Em todo o Oriente há, ainda, o conceito de que um livro não deve revelar as coisas; um livro deve, simplesmente, ajudar-nos a descobri-las.
Apesar de minha ignorância do hebreu, estudei alguma coisa da cabala e li as versões inglesa e alemã do Zohar (O Livro do Esplendor) e do El Séfer Yezira (O Livro das Relações). Sei que tais livros não foram escritos para serem entendidos, mas, sim, para serem interpretados. São estímulos para que o leitor possa acompanhar o pensamento ali exposto.
A Antigüidade clássica não demonstrou o nosso respeito pelo livro, embora saibamos que Alexandre da Macedônia tinha, sob seu travesseiro, a Ilíada e a espada -- as duas armas. Havia grande respeito por Homero, que, entretanto, não era considerado um escritor sagrado, no sentido que hoje emprestamos à palavra. A Ilíada e a Odisséia não eram então consideradas textos sagrados. Eram livros respeitados, mas também podiam ser atacados. Quanto a Platão, pôde desterrar os poetas de sua República sem se tornar suspeito de cometer heresia.
A esses testemunhos dos antigos contra o livro podemos acrescentar um outro, muito curioso, de Sêneca. Em suas admiráveis cartas a Lucílio, há uma dirigida contra um indivíduo muito vaidoso, que, segundo ele, possuía uma biblioteca de cem volumes. "E quem" -- indaga Sêneca -- "pode ter tempo para ler cem volumes?" Agora, ao contrário, as bibliotecas numerosas são motivo de admiração.
Na Antigüidade, há algo que nos custa a entender e não se parece com o nosso culto ao livro. Vê-se sempre no livro um sucedâneo da palavra oral, mas logo surge, do Oriente, um conceito novo, de todo estranho à Antigüidade clássica: o do livro sagrado. Consideremos dois exemplos, começando pelo mais tardio, o dos muçulmanos. Estes pensam que o Corão é anterior à criação, anterior à língua árabe. É um dos atributos de Deus, não uma obra de Deus. É como Sua misericórdia ou Sua justiça. No Corão fala-se, de maneira bastante misteriosa, da matriz do livro. A matriz do livro é um exemplar do Corão escrito no céu. Seria, digamos, o arquétipo platônico do Corão. E este mesmo livro -- é o Corão que o diz -- está escrito no céu, que é atributo de Deus e anterior à criação. Isso é proclamado pelos suleimans ou doutores muçulmanos.
Há ainda, outros exemplos mais próximos de nós: a Bíblia, ou, mais concretamente, a Torá ou o Pentateuco. Crê-se que tais livros foram ditados pelo Espírito Santo. Trata-se de fato curioso o atribuir livros de diversos autores e épocas a um só espírito. Na própria Bíblia, porém, está dito que o Espírito sopra de onde quer. Os hebreus tiveram a idéia de juntar diversas obras literárias de diversas épocas e com elas formar um único livro, cujo título é Tora (Bíblia, em grego). Todos esses livros são atribuídos a um único autor: o Espírito.
Certa vez perguntaram a Bernard Shaw se ele acreditava que o Espírito Santo havia escrito a Bíblia. Ele respondeu: "Todo livro que vale a pena ser lido foi escrito pelo Espírito". Quer dizer, um livro tem de extrapolar a intenção de seu autor. A intenção do autor é uma pobre coisa humana, falível, mas no livro tem de haver mais. Dom Quixote, por exemplo, é mais que uma sátira dos livros de cavalaria. É um texto absoluto, no qual o acaso não intervém de modo algum.
Pensemos nas conseqüências dessa idéia. Por exemplo, se eu digo:
Corrientes aguas, puras, cristalinas
árboles que os estáis mirando en ellas,
verde prado, de fresca sombra lleno...,
é evidente que os três versos constam de onze sílabas. Isto foi desejado pelo autor, é algo voluntário.
Mas que é isso comparado com uma obra escrita pelo Espírito? Que é isso comparado com o conceito da Divindade que condescende com a literatura e dita um livro? Nesse livro nada pode ser casual, tudo tem de estar justificado, as letras têm de estar justificadas. Compreende-se, por exemplo, que a frase inicial da Bíblia -- Bereshit baraelohim -- começa com um "B" porque isso corresponde a "bendizer". Trata-se de um livro no qual nada é casual, absolutamente nada. Isso nos leva à cabala, leva-nos ao estudo das letras, a um livro sagrado ditado pela Divindade, que vem a ser o contrário daquilo que os antigos pensavam. Estes pensavam na musa de modo bastante vago.
"Canta, musa, a cólera de Aquiles", diz Homero no princípio da Ilíada. No caso, a musa corresponde à inspiração. Ao contrário, se se pensa no Espírito, imagina-se algo mais concreto e mais forte: Deus, que condescende com a literatura; Deus, que escreve um livro. Nesse livro nada é casual, nem o número de letras, nem a quantidade de sílabas de cada versículo, bem como o fato de podermos considerar o valor numérico das letras. Tudo já terá sido considerado.
O segundo grande conceito de livro -- repito -- é o de que ele possa ser uma obra divina. Talvez esse conceito esteja mais próximo do que sentimos agora do que da idéia de livro que tinham os antigos. Isto é, a de um mero sucedâneo da palavra oral. A crença em um livro sagrado logo se extingue e é substituída por outras crenças. Por exemplo, a de que cada país é representado por um livro. Recordemo-nos de que os muçulmanos chamam os israelitas de "o povo do livro". Lembremo-nos, igualmemente, de uma frase de Heinrich Heine sobre aquela nação cuja pátria era representada por um livro -- a Bíblia: os judeus. Temos aí, então, um novo conceito, o de que cada país tem de ser representado por um livro, enfim, por alguém que pode ser autor de muitos livros.
É curioso -- não creio que isso tenha sido observado até agora -- que os países tenham escolhido pessoas que não se parecem muito com eles. Alguém pode supor, por exemplo, que a Inglaterra escolheria o Dr. Johnson como seu representante. Mas não! A Inglaterra escolheu Shakespeare, e Shakespeare é, digamos assim, o menos inglês dos escritores ingleses. O típico da Inglaterra é o understatement, é o dizer um pouco menos das coisas. Por outro lado, Shakespeare tendia à hipérbole na metáfora, e não nos surpreenderia de modo algum que ele tivesse sido italiano ou judeu, por exemplo.
Outro caso é o da Alemanha. País admirável, tão facilmente fanático, escolhe precisamente um homem tolerante, que não é fanático, e a quem pouco importa o conceito de pátria -- Göethe. A Alemanha é representada por Göethe.
Na França não se escolheu um autor, mas tende-se para Victor Hugo. Tenho uma grande admiração por Victor Hugo. Mas ele não é tipicamente francês. Victor Hugo é estrangeiro em França; com seu estilo rebuscado, com grandes metáforas, ele não é realmente representativo da França.
Outro caso ainda mais curioso é o da Espanha. A Espanha poderia ter sido representada por Lope, por Calderón, por Quevedo. Mas não! A Espanha é representada por Miguel de Cervantes. Cervantes é contemporâneo da Inquisição, mas é tolerante, não possuindo nem as virtudes nem os vícios espanhóis.
É como se cada país pensasse que tivesse que ser representado por alguém diferente, por alguém que pudesse ser, de certa forma, uma espécie de contraveneno, de teriaga, de antídoto para seus defeitos. Quanto a nós, poderíamos ter escolhido o Facundo, de Sarmiento, que é um livro nosso. Mas não! Com nossa história militar, nossa história de capa e espada, escolhemos como livro a crônica de um desertor, pois escolhemos o Martin Fierro, que embora mereça a escolha, nos induz a pensar por que nossa história é representada por um desertor da conquista do deserto. Contudo, é o que acontece. É como se cada país sentisse essa necessidade.
Vários escritores escreveram de modo brilhante acerca do livro. Quero referir-me a alguns poucos. Primeiramente, mencionarei Montaigne, que dedica um de seus ensaios ao livro. Nesse ensaio, há uma frase memorável: "Nada faço sem alegria". Montaigne afirma que o conceito de leitura obrigatória é um conceito falso. Diz que ao encontrar algum trecho difícil em um livro ele imediatamente o deixa de lado, porque vê na leitura uma forma de felicidade.
Eu me recordo de que há muitos anos se realizou uma pesquisa sobre o significado da pintura. Fizeram tal pergunta à minha irmã Norah, e ela respondeu que a pintura é a arte de dar alegria mediante formas e cores. Eu diria que a literatura é, igualmente, uma forma de alegria. Se lemos algo com dificuldade, o autor fracassou. Por isso, acho que um escritor como Joyce fracassou, em sua essência, já que sua obra requer esforço para ser lida.
Um livro não deve exigir esforço; a felicidade não deve exigir esforço. Penso que Montaigne tem razão. E ele enumera os autores de que gosta. Cita Virgílio. Diz preferir as Geórgicas à Eneida. Quanto a mim, prefiro a Eneida -- mas isso não tem nada a ver. Montaigne fala dos livros com paixão, mas diz que, embora os livros sejam uma felicidade, são, no entanto, um prazer lânguido.
Emerson o contradiz -- é outro grande trabalho acerca dos livros. Em uma conferência, Emerson diz que uma biblioteca é uma espécie de gabinete mágico. Nele se encontram, encantados, os melhores espíritos da humanidade, mas que esperam nossa palavra para sair de sua mudez. Temos de abrir o livro; aí, eles despertam. Diz Montaigne que podemos contar com a companhia dos melhores homens que a humanidade produziu, mas não os buscamos. Preferimos ler comentários, críticas, e não chegamos ao que dizem.
Fui professor de literatura inglesa durante 25 anos, na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires. Sempre dizia a meus alunos que procurassem ler pouca bibliografia, que não lessem críticas, que lessem diretamente os livros. Entenderiam pouco, talvez, mas sempre usufruiriam algo e estariam ouvindo a voz de alguém. Eu diria que o mais importante de um autor é a sua entonação; o mais importante de um livro é a voz do autor, a voz que chega até nós.
Dediquei boa parte de minha vida às letras, e creio que uma forma de felicidade é a leitura. Outra forma de felicidade -- menor -- é a criação poética, ou o que chamamos de criação, mistura de esquecimento e lembrança do que lemos.
Emerson coincide com Montaigne quanto ao fato de que devemos ler unicamente o que nos agrada, que um livro tem de ser uma forma de felicidade. Devemos tanto às letras. Sempre reli mais do que li. Creio que reler é mais importante do que ler, embora para se reler seja necessário já se haver lido. Tenho esse culto pelo livro. É possível que eu o diga de um modo que provavelmente pareça patético. E não quero que seja patético; quero que seja uma confidência que faço a cada um de vocês; não a todos, mas a cada um, porque "todos" é uma abstração, enquanto "cada um" é algo verdadeiro.
Continuo imaginando não ser cego; continuo comprando livros; continuo enchendo minha casa de livros. Há poucos dias fui presenteado com uma edição de 1966 da Enciclopédia Brokhaus. Senti sua presença em minha casa -- eu a senti como uma espécie de felicidade. Ali estavam os vinte e tantos volumes com uma letra gótica que não posso ler, com mapas e gravuras que não posso ver. E, no entanto, o livro estava ali. Eu sentia como que uma gravitação amistosa partindo do livro. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade de que dispomos, nós, os homens.
Fala-se do desaparecimento, ou da extinção do livro. Creio que isso é impossível. Dir-se-á: que diferença pode haver entre um livro e um jornal ou um disco? A diferença é que um jornal é lido para ser esquecido; um disco é ouvido, igualmente, para ser esquecido -- é algo mecânico e, portanto, frívolo. O livro é lido para eternizar a memória.
O conceito do livro sagrado, do Corão ou da Bíblia, ou dos Vedas -- onde também está dito que os Vedas criam o mundo -- pode ter passado, mas o livro ainda possui certa santidade, que devemos fazer que não se perca. Pegar um livro e abri-lo contém a possibilidade do fato estético. Que são as palavras impressas em um livro? Que significam esses símbolos mortos? Nada, absolutamente. Que é um livro, se não o abrimos? É, simplesmente, um cubo de papel e couro, com folhas. Mas, se o lemos, acontece uma coisa rara: creio que ele muda a cada instante.
Heráclito disse -- e já repeti isto em demasia -- que ninguém desce duas vezes o mesmo rio. Ningém desce duas vezes o mesmo rio porque suas águas mudam. Mas o terrível é que nós não somos menos fluidos do que o rio. Cada vez que lemos um livro, o livro mudou, a conotação das palavras é outra. Ademais, os livros estão impregnados de passado.
Falei contra a crítica, e vou desdizer-me -- mas o que importa o desdizer-me? Hamlet não é exatamente o Hamlet que Shakespeare imaginou em princípios do século XVII. Hamlet é o Hamlet de Coleridge, de Göethe e de Bradley. Hamlet renasceu. O mesmo ocorre com o Dom Quixote. Da mesma forma, com Lugones e Martinez Estrada, já que Martin Fierro não é mais o mesmo. Os leitores foram enriquecendo o livro.
Se lemos um livro antigo é como se lêssemos durante todo o tempo que transcorreu entre o dia em que foi escrito e nós. Por isso convém manter o culto ao livro. O livro pode conter muitos erros, podemos não concordar com as opiniões expendidas pelo autor, mas, ainda assim, ele conserva algo sagrado, algo divino, não com um tipo de respeito supersticioso, mas com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria.
Era isso o que desejava dizer-lhes hoje.
24 de maio de 1978.
Dos diversos instrumentos utilizados pelo homem, o mais espetacular é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio, o telescópio são extensões de sua visão; o telefone é a extensão de sua voz; em seguida, temos o arado e a espada, extensões de seu braço. O livro, porém, é outra coisa: o livro é uma extensão da sua memória e da imaginação.
Em César e Cleópatra, de Shaw, quando se fala da Biblioteca de Alexandria, diz-se que ela é a memória da humanidade. Isso é o livro. E é algo mais, também: a imaginação. Que é o nosso passado, se não uma série de sonhos? Que diferença pode haver entre recordar sonhos e recordar o passado?
Essa é a função exercida pelo livro.
Pensei, certa vez, em escrever uma história do livro. Não do ponto de vista físico. Os livros não me interessam fisicamente -- sobretudo os livros dos bibliófilos, que costumam ser volumosos --, mas, sim, as diversas valorações que deles se têm feito. Fui antecipado por Spengler, que em seu Decadência do Ocidente escreveu páginas preciosas a respeito do livro. Complementando com algumas observações de caráter pessoal, vou restringir-me ao que disse Spengler.
Os antigos não professavam nosso culto ao livro -- algo que me surpreende --, pois nele viam apenas um substituto da palavra oral. Aquela frase sempre citada -- scripta manent, verba volant -- não significa que a palavra oral seja efêmera, mas, sim, que a palavra escrita é algo duradouro e morto. Por outro lado, a palavra oral tem alguma coisa de fugaz, de inconstante. Fugaz e sagrado, como disse Platão. Todos os grandes mestres da humanidade foram, curiosamente, grandes mestres da oratória.
Analisemos o primeiro caso: Pitágoras. Sabemos que, deliberadamente, Pitágoras nada escreveu. Não escreveu porque não quis tornar-se prisioneiro da palavra escrita. Sentiu, sem dúvida, que a letra mata e o espírito vivifica -- o que, mais tarde, viria a ser citado na Bíblia. Ele deve ter sentido isso e não quis ficar preso à palavra escrita. Daí porque Aristóteles jamais fala de Pitágoras, mas dos pitagóricos. Diz-nos, por exemplo, que os pitagóricos professavam a crença, o dogma do eterno retorno, que muito mais tarde seria descoberto por Nietzsche. É a idéia do tempo cíclico, refutada por Santo Agostinho na Cidade de Deus. Santo Agostinho diz, em bela metáfora, que a cruz de Cristo nos salva do labirinto circular dos estóicos. Da idéia de um tempo cíclico aproximaram-se também Hume, Blanqui... e tantos outros.
Pitágoras não escreveu porque não quis. Queria que seu pensamento permanecesse vivo, após sua morte corporal, na mente de seus discípulos. Aqui se aplica aquela citação -- não sei grego, portanto falarei em latim: Magister dixit. Isso não significa que eles estivessem contidos pela palavra do mestre; pelo contrário, afirma a liberdade de continuarem pensando o pensamento inicial do mestre.
Não sabemos se com ele surgiu a doutrina do tempo cíclico, mas sabemos que seus discípulos a professavam. Pitágoras morre fisicamente, e eles, por uma espécie de transmigração -- disso Pitágoras teria gostado --, continuam pensando e repensando seu pensamento e, quando são repreendidos por dizerem algo novo, eles se refugiam naquela fórmula: "O mestre o disse" (Magister dixit).
Há, contudo, outros exemplos. Como aquele, muito importante, de Platão, que diz que os livros são como efígies -- deve ter pensado em esculturas ou em quadros -- que alguém pensa estarem vivas, mas, ao serem indagadas sobre alguma coisa, nada respondem. Então, para corrigir essa mudez dos livros, ele inventa o diálogo platônico. Quer dizer, Platão multiplica-se em muitos personagens: Sócrates, Górgias e os demais. Pode-se também supor que Platão desejava consolar-se pela morte de Sócrates, imaginando que este continuava vivo. Diante de qualquer problema, ele dizia a si mesmo: "Que teria dito Sócrates sobre isso?" de algum modo, portanto, tratava-se da imortalidade de Sócrates, que nada deixou escrito, mas foi um mestre da oratória.
De Cristo sabemos que escreveu uma única vez algumas palavras que a areia se encarregou de apagar. Ao que sabemos, nada mais escreveu. Buda foi igualmente um mestre da palavra oral -- suas prédicas permanecem. Logo deparamos com uma frase de Santo Anselmo: "Colocar um livro nas mãos de um ignorante é tão perigoso quanto colocar uma espada nas mãos de uma criança". Era assim que se pensava a respeito dos livros. Em todo o Oriente há, ainda, o conceito de que um livro não deve revelar as coisas; um livro deve, simplesmente, ajudar-nos a descobri-las.
Apesar de minha ignorância do hebreu, estudei alguma coisa da cabala e li as versões inglesa e alemã do Zohar (O Livro do Esplendor) e do El Séfer Yezira (O Livro das Relações). Sei que tais livros não foram escritos para serem entendidos, mas, sim, para serem interpretados. São estímulos para que o leitor possa acompanhar o pensamento ali exposto.
A Antigüidade clássica não demonstrou o nosso respeito pelo livro, embora saibamos que Alexandre da Macedônia tinha, sob seu travesseiro, a Ilíada e a espada -- as duas armas. Havia grande respeito por Homero, que, entretanto, não era considerado um escritor sagrado, no sentido que hoje emprestamos à palavra. A Ilíada e a Odisséia não eram então consideradas textos sagrados. Eram livros respeitados, mas também podiam ser atacados. Quanto a Platão, pôde desterrar os poetas de sua República sem se tornar suspeito de cometer heresia.
A esses testemunhos dos antigos contra o livro podemos acrescentar um outro, muito curioso, de Sêneca. Em suas admiráveis cartas a Lucílio, há uma dirigida contra um indivíduo muito vaidoso, que, segundo ele, possuía uma biblioteca de cem volumes. "E quem" -- indaga Sêneca -- "pode ter tempo para ler cem volumes?" Agora, ao contrário, as bibliotecas numerosas são motivo de admiração.
Na Antigüidade, há algo que nos custa a entender e não se parece com o nosso culto ao livro. Vê-se sempre no livro um sucedâneo da palavra oral, mas logo surge, do Oriente, um conceito novo, de todo estranho à Antigüidade clássica: o do livro sagrado. Consideremos dois exemplos, começando pelo mais tardio, o dos muçulmanos. Estes pensam que o Corão é anterior à criação, anterior à língua árabe. É um dos atributos de Deus, não uma obra de Deus. É como Sua misericórdia ou Sua justiça. No Corão fala-se, de maneira bastante misteriosa, da matriz do livro. A matriz do livro é um exemplar do Corão escrito no céu. Seria, digamos, o arquétipo platônico do Corão. E este mesmo livro -- é o Corão que o diz -- está escrito no céu, que é atributo de Deus e anterior à criação. Isso é proclamado pelos suleimans ou doutores muçulmanos.
Há ainda, outros exemplos mais próximos de nós: a Bíblia, ou, mais concretamente, a Torá ou o Pentateuco. Crê-se que tais livros foram ditados pelo Espírito Santo. Trata-se de fato curioso o atribuir livros de diversos autores e épocas a um só espírito. Na própria Bíblia, porém, está dito que o Espírito sopra de onde quer. Os hebreus tiveram a idéia de juntar diversas obras literárias de diversas épocas e com elas formar um único livro, cujo título é Tora (Bíblia, em grego). Todos esses livros são atribuídos a um único autor: o Espírito.
Certa vez perguntaram a Bernard Shaw se ele acreditava que o Espírito Santo havia escrito a Bíblia. Ele respondeu: "Todo livro que vale a pena ser lido foi escrito pelo Espírito". Quer dizer, um livro tem de extrapolar a intenção de seu autor. A intenção do autor é uma pobre coisa humana, falível, mas no livro tem de haver mais. Dom Quixote, por exemplo, é mais que uma sátira dos livros de cavalaria. É um texto absoluto, no qual o acaso não intervém de modo algum.
Pensemos nas conseqüências dessa idéia. Por exemplo, se eu digo:
Corrientes aguas, puras, cristalinas
árboles que os estáis mirando en ellas,
verde prado, de fresca sombra lleno...,
é evidente que os três versos constam de onze sílabas. Isto foi desejado pelo autor, é algo voluntário.
Mas que é isso comparado com uma obra escrita pelo Espírito? Que é isso comparado com o conceito da Divindade que condescende com a literatura e dita um livro? Nesse livro nada pode ser casual, tudo tem de estar justificado, as letras têm de estar justificadas. Compreende-se, por exemplo, que a frase inicial da Bíblia -- Bereshit baraelohim -- começa com um "B" porque isso corresponde a "bendizer". Trata-se de um livro no qual nada é casual, absolutamente nada. Isso nos leva à cabala, leva-nos ao estudo das letras, a um livro sagrado ditado pela Divindade, que vem a ser o contrário daquilo que os antigos pensavam. Estes pensavam na musa de modo bastante vago.
"Canta, musa, a cólera de Aquiles", diz Homero no princípio da Ilíada. No caso, a musa corresponde à inspiração. Ao contrário, se se pensa no Espírito, imagina-se algo mais concreto e mais forte: Deus, que condescende com a literatura; Deus, que escreve um livro. Nesse livro nada é casual, nem o número de letras, nem a quantidade de sílabas de cada versículo, bem como o fato de podermos considerar o valor numérico das letras. Tudo já terá sido considerado.
O segundo grande conceito de livro -- repito -- é o de que ele possa ser uma obra divina. Talvez esse conceito esteja mais próximo do que sentimos agora do que da idéia de livro que tinham os antigos. Isto é, a de um mero sucedâneo da palavra oral. A crença em um livro sagrado logo se extingue e é substituída por outras crenças. Por exemplo, a de que cada país é representado por um livro. Recordemo-nos de que os muçulmanos chamam os israelitas de "o povo do livro". Lembremo-nos, igualmemente, de uma frase de Heinrich Heine sobre aquela nação cuja pátria era representada por um livro -- a Bíblia: os judeus. Temos aí, então, um novo conceito, o de que cada país tem de ser representado por um livro, enfim, por alguém que pode ser autor de muitos livros.
É curioso -- não creio que isso tenha sido observado até agora -- que os países tenham escolhido pessoas que não se parecem muito com eles. Alguém pode supor, por exemplo, que a Inglaterra escolheria o Dr. Johnson como seu representante. Mas não! A Inglaterra escolheu Shakespeare, e Shakespeare é, digamos assim, o menos inglês dos escritores ingleses. O típico da Inglaterra é o understatement, é o dizer um pouco menos das coisas. Por outro lado, Shakespeare tendia à hipérbole na metáfora, e não nos surpreenderia de modo algum que ele tivesse sido italiano ou judeu, por exemplo.
Outro caso é o da Alemanha. País admirável, tão facilmente fanático, escolhe precisamente um homem tolerante, que não é fanático, e a quem pouco importa o conceito de pátria -- Göethe. A Alemanha é representada por Göethe.
Na França não se escolheu um autor, mas tende-se para Victor Hugo. Tenho uma grande admiração por Victor Hugo. Mas ele não é tipicamente francês. Victor Hugo é estrangeiro em França; com seu estilo rebuscado, com grandes metáforas, ele não é realmente representativo da França.
Outro caso ainda mais curioso é o da Espanha. A Espanha poderia ter sido representada por Lope, por Calderón, por Quevedo. Mas não! A Espanha é representada por Miguel de Cervantes. Cervantes é contemporâneo da Inquisição, mas é tolerante, não possuindo nem as virtudes nem os vícios espanhóis.
É como se cada país pensasse que tivesse que ser representado por alguém diferente, por alguém que pudesse ser, de certa forma, uma espécie de contraveneno, de teriaga, de antídoto para seus defeitos. Quanto a nós, poderíamos ter escolhido o Facundo, de Sarmiento, que é um livro nosso. Mas não! Com nossa história militar, nossa história de capa e espada, escolhemos como livro a crônica de um desertor, pois escolhemos o Martin Fierro, que embora mereça a escolha, nos induz a pensar por que nossa história é representada por um desertor da conquista do deserto. Contudo, é o que acontece. É como se cada país sentisse essa necessidade.
Vários escritores escreveram de modo brilhante acerca do livro. Quero referir-me a alguns poucos. Primeiramente, mencionarei Montaigne, que dedica um de seus ensaios ao livro. Nesse ensaio, há uma frase memorável: "Nada faço sem alegria". Montaigne afirma que o conceito de leitura obrigatória é um conceito falso. Diz que ao encontrar algum trecho difícil em um livro ele imediatamente o deixa de lado, porque vê na leitura uma forma de felicidade.
Eu me recordo de que há muitos anos se realizou uma pesquisa sobre o significado da pintura. Fizeram tal pergunta à minha irmã Norah, e ela respondeu que a pintura é a arte de dar alegria mediante formas e cores. Eu diria que a literatura é, igualmente, uma forma de alegria. Se lemos algo com dificuldade, o autor fracassou. Por isso, acho que um escritor como Joyce fracassou, em sua essência, já que sua obra requer esforço para ser lida.
Um livro não deve exigir esforço; a felicidade não deve exigir esforço. Penso que Montaigne tem razão. E ele enumera os autores de que gosta. Cita Virgílio. Diz preferir as Geórgicas à Eneida. Quanto a mim, prefiro a Eneida -- mas isso não tem nada a ver. Montaigne fala dos livros com paixão, mas diz que, embora os livros sejam uma felicidade, são, no entanto, um prazer lânguido.
Emerson o contradiz -- é outro grande trabalho acerca dos livros. Em uma conferência, Emerson diz que uma biblioteca é uma espécie de gabinete mágico. Nele se encontram, encantados, os melhores espíritos da humanidade, mas que esperam nossa palavra para sair de sua mudez. Temos de abrir o livro; aí, eles despertam. Diz Montaigne que podemos contar com a companhia dos melhores homens que a humanidade produziu, mas não os buscamos. Preferimos ler comentários, críticas, e não chegamos ao que dizem.
Fui professor de literatura inglesa durante 25 anos, na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires. Sempre dizia a meus alunos que procurassem ler pouca bibliografia, que não lessem críticas, que lessem diretamente os livros. Entenderiam pouco, talvez, mas sempre usufruiriam algo e estariam ouvindo a voz de alguém. Eu diria que o mais importante de um autor é a sua entonação; o mais importante de um livro é a voz do autor, a voz que chega até nós.
Dediquei boa parte de minha vida às letras, e creio que uma forma de felicidade é a leitura. Outra forma de felicidade -- menor -- é a criação poética, ou o que chamamos de criação, mistura de esquecimento e lembrança do que lemos.
Emerson coincide com Montaigne quanto ao fato de que devemos ler unicamente o que nos agrada, que um livro tem de ser uma forma de felicidade. Devemos tanto às letras. Sempre reli mais do que li. Creio que reler é mais importante do que ler, embora para se reler seja necessário já se haver lido. Tenho esse culto pelo livro. É possível que eu o diga de um modo que provavelmente pareça patético. E não quero que seja patético; quero que seja uma confidência que faço a cada um de vocês; não a todos, mas a cada um, porque "todos" é uma abstração, enquanto "cada um" é algo verdadeiro.
Continuo imaginando não ser cego; continuo comprando livros; continuo enchendo minha casa de livros. Há poucos dias fui presenteado com uma edição de 1966 da Enciclopédia Brokhaus. Senti sua presença em minha casa -- eu a senti como uma espécie de felicidade. Ali estavam os vinte e tantos volumes com uma letra gótica que não posso ler, com mapas e gravuras que não posso ver. E, no entanto, o livro estava ali. Eu sentia como que uma gravitação amistosa partindo do livro. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade de que dispomos, nós, os homens.
Fala-se do desaparecimento, ou da extinção do livro. Creio que isso é impossível. Dir-se-á: que diferença pode haver entre um livro e um jornal ou um disco? A diferença é que um jornal é lido para ser esquecido; um disco é ouvido, igualmente, para ser esquecido -- é algo mecânico e, portanto, frívolo. O livro é lido para eternizar a memória.
O conceito do livro sagrado, do Corão ou da Bíblia, ou dos Vedas -- onde também está dito que os Vedas criam o mundo -- pode ter passado, mas o livro ainda possui certa santidade, que devemos fazer que não se perca. Pegar um livro e abri-lo contém a possibilidade do fato estético. Que são as palavras impressas em um livro? Que significam esses símbolos mortos? Nada, absolutamente. Que é um livro, se não o abrimos? É, simplesmente, um cubo de papel e couro, com folhas. Mas, se o lemos, acontece uma coisa rara: creio que ele muda a cada instante.
Heráclito disse -- e já repeti isto em demasia -- que ninguém desce duas vezes o mesmo rio. Ningém desce duas vezes o mesmo rio porque suas águas mudam. Mas o terrível é que nós não somos menos fluidos do que o rio. Cada vez que lemos um livro, o livro mudou, a conotação das palavras é outra. Ademais, os livros estão impregnados de passado.
Falei contra a crítica, e vou desdizer-me -- mas o que importa o desdizer-me? Hamlet não é exatamente o Hamlet que Shakespeare imaginou em princípios do século XVII. Hamlet é o Hamlet de Coleridge, de Göethe e de Bradley. Hamlet renasceu. O mesmo ocorre com o Dom Quixote. Da mesma forma, com Lugones e Martinez Estrada, já que Martin Fierro não é mais o mesmo. Os leitores foram enriquecendo o livro.
Se lemos um livro antigo é como se lêssemos durante todo o tempo que transcorreu entre o dia em que foi escrito e nós. Por isso convém manter o culto ao livro. O livro pode conter muitos erros, podemos não concordar com as opiniões expendidas pelo autor, mas, ainda assim, ele conserva algo sagrado, algo divino, não com um tipo de respeito supersticioso, mas com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria.
Era isso o que desejava dizer-lhes hoje.
24 de maio de 1978.
Jorge Luis Borges, Cinco visões pessoais. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2002, pp. 13-20. O livro é uma coletânea de aulas do autor na Universidade de Belgrano, em Buenos Aires, Argentina.
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