Creio que não existe nada de mais belo, de mais profundo, de mais simpático, de mais viril e de mais perfeito do que o Cristo; e eu digo a mim mesmo, com um amor cioso, que não existe e não pode existir. Mais do que isto: se alguém me provar que o Cristo está fora da verdade e que esta não se acha n'Ele, prefiro ficar com o Cristo a ficar com a verdade. (Dostoievski)
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4 de dez. de 2007
Un Hommage à Edith Piaf, la Môme.
Acabei de sair do cinema; fui ver, enfin, "Piaf, um hino ao amor". Confesso que relutei, porque sei da história triste de sua vida. Deveria ter ido quando estava no Rio de Janeiro (até comprei jornal etc.), depois deixei para ver aqui. Planejei para ir, finalmente, na semana passada, e não fui. De domingo não passava, e passou. Mas hoje é segunda-feira, eu fui. Os cinemas estão mais vazios nas segundas, há menos gente. Segui o conselho da chère Eva Châtel e levei lenços de papel. Chorei do início ao fim do filme, a infância de Piaf não me pareceu menos triste que sua morte, que não foi menos triste que sua juventude. Fui ver o filme não para obter um prazer qualquer, um momento de arrebatamento ou catarse. Acreditem, entrei no cinema como uma espécie de devedora. Assim compareci à sala de projeção. Quantas e quantas vezes me emocionei com Piaf, ao ouvi-la, talvez ela nunca imaginasse, em meu "walk-man" enquando je me promenais en vélo à Paris. Devo muito a ela. Quando saía de casa e virava a esquina, dobrava à esquerda e subia a rue de Belleville para tomar o métro Pyrenées e ir a qualquer lugar, passava em frente a um prédio antigo e incrivelmente simplório em cuja fachada havia uma placa com os seguintes dizeres: "Nas escadarias deste prédio, na mais completa miséria, nasceu Edith Piaf, que mais tarde encantaria o mundo com sua voz." Era mais ou menos isso, e quando eu lia aquelas palavras, meu coração se enternecia, eu quase sempre me emocionava e pensava que onde eu estava pisando e onde eu vivia Edith Piaf deveria ter andado, cantado, bebido, chorado, caído. Jorge Luis Borges diz que não há arte sem dor, e creio que todo grande artista produz de sua miséria profunda o que o Espírito sopra, e que nos emociona, nos silencia. Assim Édith Giovanna Gassion cantava com as entranhas, com o sangue, com a alma. No filme achei significativo que ela tenha nascido no mesmo dia de Billie Holliday. Que grande paráfrase de vidas! Para quem conhece a história de Billie, sabe também o quanto de dor, de dependência química, de abuso moral, afetivo e tanto mais essa outra grande cantora, negra e norte-americana, sofreu. Isso, no filme, me chamou a atenção.
Neste fim de semana comprei uma garrafa de champagne brüt para beber no próximo fim de semana, vendo um filme, no sofá, confortavelmente. Às vezes faço essas loucuras, e isso muito raramente, porque champagne c'est pas bon marché (oh, me perdoem o francês de la rue!). Mas acabei de abrir a garrafa de champagne e agora, enquanto escrevo, faço um brinde a Edith Piaf e sua voz. Um brinde de amor e solidariedade a seus amores frustrados, a sua filha perdida, a sua infância pobre, sua juventude de rejeição materna e paterna, sua solidão. E vejo que sem essas dores Piaf não teria sido Piaf. Sem a surdez Beethoven não teria composto a Nona Sinfonia. Sem a loucura Van Gogh talvez não tivesse pintado nada. Clarice não teria sido Clarice, e teria sido Haia, imigrante russa no Brasil, sem ter escrito uma só linha. Bandeira deve à tuberculose a descoberta da solidão e da mediocridade da grande sociedade na qual vivemos. E há ainda aqueles que trazem em si o mal do século, a tristeza de tudo possuir, e nada ter, como o Vinícius, ou a tristeza de ser, como Pessoa, como Drummond. A simples consciência e perplexidade diante de ser.
Dizem serem os franceses um povo frio e mal educado, e certamente há muitos deles que o são. Mas permitam-me acrescentar que l'esprit français é permanentemente assoifé de uma alegria qui ne vient pas. Essa alegria, esse êxtase, essa simplicidade de alma se perdem, inevitavelmente, nas inúmeras reflexões existenciais acerca do ser e do nada, acerca da validade da vida, do grande vazio que é, de fato, a existência. Da certeza da finitude e da certeza da imortalidade da alma e do pensamento. Isso é um choque, uma contradição. Então as alegrias, tão passageiras, são vividas intensamente - porque são passageiras. Muito perto do meu prédio, em Belleville, havia um café onde quase todas as noites uma mulher tocava seu acordéon e cantava Piaf. Acho que ela só cantava Piaf, não me lembro de ter ouvido outra coisa. Ela usava um macacão branco, não sei por que me lembro disso agora, e recebia agradecida la monnaie que o disitinto público lhe jogava. Junto com ela, em geral, cantavam todos, e se formava ali um coro joyeux e unido, que sabia de cor todas as músicas, logo nos primeiros acordes. Estive lá algumas vezes, tomei vinho e cantei Piaf, também. E, embora não conhecesse ninguém, sentia uma fraternité incroyable no ar, como se estivéssemos ali para viver um momento celestial, único, eterno e finito - posto que era chama.
Para muita gente, ouvir Piaf pode parecer très chic, e só, mas para mim ouvir Piaf é um bálsamo e uma dor lancinante, tudo ao mesmo tempo. Foi Piaf quem acompanhou também, a perda do único grande amor que tive, também um francês. É verdade que a França foi uma révolution em minha vida, foram quatro anos de inusitada alegria, de descobertas fantásticas, de amizades inquebráveis. E Piaf se pergunta, neste vídeo: À quoi ça sert, l'amour? Muito simples, meu caro Watson, serve pra isso mesmo, pra chorar, sofrer, e depois viver tudo de novo.
Então fui ver o filme hoje como se pisasse em ovos, porque não é só a história de uma cantora francesa que foi filmada. É bem mais, muito mais que isso. O champagne está muito bom, e Piaf me emociona. Só falta, aqui, ver o rio Sena ou Montmartre. Ver Paris do alto de Montmartre, ou as freiras de Montmartre indo e vindo, isso é engraçado. Ou tomar un expresso à Belleville, sûr le comptoir. Esqueçam, e me perdoem, mas este filme me fez chorar e agora mesmo choro de novo. Non, c'est sûr, je ne regrette rien, mas Piaf me é tão cara e tão preciosa, em sua fragilidade e menos de 1,50m. Uma voz enorme num corpo tão frágil. Piaf, ma chère, je t'ai rendu hommage aujourd'hui. Amanhã vou ver "Paris, je t'aime". Mais um estoque de lenços de papel perdido.
Meu conselho: se você não tem nada a ver com Piaf, fuja do filme. Ele vai ser chato e cansativo, aos seus olhos. Talvez, e é bem possível que se eu visse alguma coisa sobre a vida de Sheakspeare, não me emocionasse. A vida é assim. Não sabemos e não entendemos tudo, mas aquilo que nos é especial deve ser cultivado.
Beijos e lágrimas,
Maya
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