ESCUTA, ZÉ NINGUÉM!
“(...) Esta é a hora primeira de um futuro maior, do fim de toda a forma de mediocridade. Porque entretanto o modo como age a peste emocional se foi tornando demasiado óbvio. Acusa a Polônia das intenções de agressão militar, depois de tomada a decisão de agredir a Polônia. Acusa o rival da intenção do crime depois de decidir eliminá-lo. Acusa de pornografia a vida sexual sã, porque tem em mente intenções pornográficas. Já te topamos, Zé Ninguém; vais-te tornando transparente sob tua fachada de desgraça a submissão. O que te é pedido é que determines o rumo do mundo com o teu trabalho e a tua realização — substituir uma forma de tirania por outra é que nunca. O que se te exige é que te submetas às leis da vida tal como quererias que os outros fizessem; que te modifiques à medida que os vais criticando. Cada vez é mais óbvia a tua tagarelice, a tua avidez, a tua irresponsabilidade — o mal de ti que conspurca toda a beleza da Terra. Sei que não te agrada o que ouves, que preferes berrar “Viva!”, que és bem capaz de parir o futuro do proletariado do IV Reich. Mas não é menor a minha convicção de que as coisas te vão sendo mais difíceis hoje que no passado — embora sejas ainda brutal sob a tua máscara de sociabilidade e gentileza, Zé Ninguém. Não acreditas? Deixe então que te refresque a memória:
Lembras-te da magnífica tarde em que vieste, como lenhador que eras, pedir trabalho à minha cabana na montanha? Depois de farejar-te, o meu cachorro saltou-te aos joelhos. Viste que era cão de boa raça e disseste então: “Devia amarrá-lo para se fazer bravo. O cão é manso demais.” Ao que te respondi: “Eu não quero ter uma fera amarrada com correntes. Não gosto de cães raivosos.” Ah, lenhador, tenho bem mais inimigos do que tu, mas continuo a preferir o meu majestoso cão, meigo com toda gente.
Lembras-te do domingo chuvoso em que a angústia perante o fenômeno da tua rigidez biológica me levou a sair de casa, largando o trabalho, para me enfiar num dos teus bares? Sentei-me a uma mesa e pedi um uísque (não, Zé Ninguém, não sou alcoólico, embora goste de beber de vez em quando). Ia, pois, bebendo o meu copo quando te ouvi, no teu paleio de recém-desmobilizado, descrever os Japoneses como “macacos horrendos”. E foi então que afirmaste, com a expressão facial que eu tão bem conheço do meu trabalho terapêutico: “Vocês sabem o que a malta devia fazer com os Japoneses da costa ocidental? Estrangulá-los todos, um por um, mas devagar, lentamente, apertar-lhes o garrote a pouco e pouco, assim...”, e ias fazendo o gesto com as mãos, Zé Ninguém. O criado apoiava-te, fazia que sim em admiração perante a tua heróica masculinidade. Já alguma vez tiveste um bebê recém-nascido nos braços, patriota de m...? Durante muitas décadas continuarás ainda a estrangular espiões japoneses, aviadores americanos, camponeses russos, oficiais alemães, anarquistas ingleses e comunistas gregos — hás-de fuzila-los, condená-los à cadeira elétrica, às câmaras de gás —, o que em nada irá alterar a tua prisão de ventre generalizada, a tua incapacidade de amar, o teu reumatismo ou a tua doença mental. Não serão os crimes que possas cometer que irão arrancar-te do lameiro. Olha para ti, Zé Ninguém. É a tua única esperança.
(...) A única coisa capaz de conquistar-te será o teu sentido de pureza, a tua aspiração à verdadeira vida — e quanto a isso, não tenho a menor dúvida. Uma vez superada a tua mediocridade e mesquinhez, começarás a pensar — de início, sem dúvida, errática, ridícula e erroneamente, mas pensarás com seriedade. Terás de aprender a superar a dor que todo esforço de pensamento comporta em si mesmo, tal como eu e outros suportamos a pena de pensar-te — durante anos, em silêncio, de dentes cerrados. Esta nossa dor far-te-á pensar. E quando começares a fazê-lo sentirás a magnitude do absurdo dos teus quatro milênios de “civilização”. Ser-te-á difícil entender como foi possível que os teus jornais nada mais tivessem a relatar e comentar que paradas sem sentido, condecorações, crimes, enforcamentos, diplomacias, calúnias, mobilizações, pactos, bombardeamentos — e que não tenhas nunca reagido com agressividade ou te tenhas sequer apercebido do perigo que corrias. Talvez te houvesse sido possível entenderes-te a ti próprio se não tivesses engolido bovinamente tudo o que te caía nas mãos. Mas o que deveras te será difícil é a verificação do fato de que tudo foste macaqueando e papagueando através dos séculos; o fato de que o que no teu íntimo acharas certo o era realmente, e que tomaste por patrióticos os teus erros. Terás vergonha do que fizeste, e nisso reside a única esperança de que os nossos bisnetos não venham a ser obrigados a ler a tua história militar. E não mais será possível a montagem duma grande revolução apenas para por em cena um novo “Pedro, o Grande”. (...).
(...) Quererás agora ouvir-me?
“Vamos a isso, porque é que eu não hei-de dar ouvidos a mais uma utopiazinha? Não há nada a fazer, meu caro doutor — sou e continuarei a ser um pobre diabo, o homem da rua, que não tem opinião própria. Aliás, quem sou eu para...”
Ouve. Escondes-te detrás da lenda do Zé Ninguém, porque tens medo de mergulhar e de ter de nadar no grande rio da vida, quanto mais não seja em nome dos teus filhos. A primeira de todas as coisas que não mais farás será consentir na percepção de ti próprio como sujeito insignificante e sem opinião, que afirma a todo momento “mas quem sou eu...”. Tu tens a tua opinião própria e no futuro que prevejo passarás a considerar como vergonha não a conheceres, não a defenderes, não a expressares.
***
Wilhelm Reich
Escuta, Zé Ninguém!
Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Portugal, abril de 1982; primeira edição: maio de 1972.
Trechos retirados das páginas 91, 92, 97, 98, 100 e 101.
.
NOTA: Já postei este trecho desse verdadeiro desabafo de Reich. Como gosto MUITO do que ele diz, aqui vai, de novo... Quem tem olhos para ler...
Nenhum comentário:
Postar um comentário