A ministra que teve vergonha na cara
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O presidente Lula ficará devendo eternamente à companheira Marina Silva um dos melhores momentos de seu governo: o pedido de demissão da ministra do Meio Ambiente. A República já viu ministros abandonando o barco para disputar eleições, para se esconder de escândalos e até para escapar do naufrágio coletivo (consulte-se, sobre esse item, o livro de queixas de José Sarney e Fernando Collor). Já houve ministro que saiu para tocar negócios, próprios ou de terceiros, e para se aposentar nos tribunais.
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Há tempos não se via alguém deixar o governo porque tem vergonha na cara.
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Quem percorrer os gabinetes do Palácio do Planalto e da Esplanada dos Ministérios não vai encontrar um só em que não se fale mal dos vizinhos e do governo. Em alguns casos, muito pior do que se falava no Meio Ambiente. Vá ver se há alguém disposto a largar a rapadura... Governar é ser solidário em público e engolir sapos na intimidade. Não se pode acusar Marina de falta de solidariedade. Sua carta de demissão atribui ao governo Lula um rosário de feitos ambientais e não tem uma só linha de recriminação ao presidente ou aos colegas. Marina não deixou o governo porque queria salvar os bagres do Rio Madeira, mas porque não queria engolir os sapos dos gabinetes de Brasília.
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Marina, Lula e a maior parte do governo estão muito mais próximos em matéria de política ambiental do que fazem supor as divergências entre eles, vistas agora com lentes de aumento. Na carta de demissão ela afirma que essa política tornou-se irreversível. Lula disse que a ministra sai, mas a política ambiental continua. Por que, então, ela saiu? Porque sentiu que Lula faltou-lhe com o respeito quando entregou ao ministro Mangabeira Unger a gestão do Plano da Amazônia Sustentável. Menos pela decisão e mais pela forma: Lula disse que Marina não tinha isenção para a tarefa. Ela ficou ofendida. Parece pirraça. É dignidade.
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A última vez em que se viu algo semelhante foi em 1977, quando o empresário Severo Fagundes Gomes deixou o Ministério da Indústria e Comércio. Severo saiu porque descobriu que seu chefe, o general Ernesto Geisel, andava prestando muita atenção a fuxicos de dedos-duros e puxa-sacos. Severo sobreviveu à ditadura, tornou-se senador do PMDB, foi amigo de Ulysses Guimarães e morreu com ele no mar. Criou gado na floresta amazônica, mas gostava de índio vivo. Foi o maior defensor da causa ianomâmi no Senado. A mansão aristocrática que tinha em São José dos Campos virou parque público. Severo Gomes deixou uma história mais bonita que a dos puxa-sacos.
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O movimento político de Marina também é surpreendente. Ela sai no momento em que praticamente tudo dá certo para o governo e o presidente sustenta índices históricos de popularidade. Parece loucura. É sabedoria. Marina não precisa estar no governo para influir nem precisa aderir à oposição para ganhar holofotes. Basta continuar sendo quem é. Ela tem um mandato no Senado, forte base eleitoral em seu Estado, visibilidade internacional e uma causa que transcende o momento. Agora está livre dos sapos.
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O país fica devendo à ministra a lembrança de que também se faz política sem cargos - e com uma altivez que pode até parecer chilique, e daí? Quando a mágoa passar, Lula terá de agradecer a Marina pela recordação de que presidentes podem muito, mas nem tudo.
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Texto de Ricardo Amaral, repórter especial da revista Época em Brasília, publicado na revista n.552, de 19/05/2008, p. 44. Contatos pelo site www.epoca.com.br/amaral .
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FOTOGRAFIA: Web
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