Creio que não existe nada de mais belo, de mais profundo, de mais simpático, de mais viril e de mais perfeito do que o Cristo; e eu digo a mim mesmo, com um amor cioso, que não existe e não pode existir. Mais do que isto: se alguém me provar que o Cristo está fora da verdade e que esta não se acha n'Ele, prefiro ficar com o Cristo a ficar com a verdade. (Dostoievski)

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3 de set. de 2007

Luiz Carlos Cagliari [1]


(...)

Todo falante nativo usa sua língua conforme as regras próprias de seu dialeto, espelho da comunidade lingüística a que está ligado. Naturalmente, há diferenças entre o modo de falar de um dialeto e o de outro, mas isso não significa que um dialeto dispõe de regras e outro não. A linguagem é um fato social e sobrevive graças às convenções sociais que são admitidas para ela. As pessoas falam da meneira como seus semelhantes e por isso se entendem. Se cada um falasse como quisesse, jamais poderia existir a linguagem numa sociedade. Alguém pode dizer "nóis vai prantá arroiz" porque é assim que se fala em seu dialeto, enquanto outro diz "nós vamos plantar arroz". Os dois modos de falar são diferentes em alguns aspectos e por isso caracterizam dialetos diferentes, mas ambos são regidos por regras muito específicas. Tanto se pode fazer uma "gramática normativa" para um dialeto como para outro.

Um dialeto não é simplesmente um uso errado do modo de falar do outro dialeto. São modos diferentes. Todavia, seria estranho, por exemplo, que os falantes estabelecessem a ordem das palavras livremente, dizendo algo como "prantá vai narrois nóis" ou "plantar vamos arroz nós", pois esse modo de organizar as palavras em sentenças foge às regras de ambos os dialetos.

As crianças de 3 ou 7 anos, como falantes nativos, também usam um dialeto que tem, além de um vocabulário, um conjunto de regras gramaticais específicas. Uma característica da fala da criança que chama a atenção do adulto é o fato de ela generalizar regras, ou seja, o fato de ela aplicar a regra geral quando deveria aplicar uma particular. É quando a criança diz eu fazi, em vez de eu fiz, como eu vendi, comi etc. Qualquer manifestação lingüística, desde a mais tenra idade, tem vocabulário e regras. A criança vai aprender a dizer "nóis vai" ou "nós vamos" não porque é menos ou mais dotada para a linguagem, mas porque se tornou falante de um ou de outro dialeto. Por outro lado, pelo fato de aprender a falar, com a complexidade que isso envolve, com apenas 3 anos, prova que tem capacidade intelectual extremamente desenvolvida e apta para a fala, sem precisar de professores ou de métodos específicos, bastando para tanto o convívio com uma comunidade falante. Evidentemente, os pais e a comunidade de um modo geral zelam pelo desempenho lingüístico de seus membros, porque lhes convém que cada um assuma seu papel na sociedade.

Uma criança que entra para a escola pela primeira vez aos 7 anos já trilhou um longo caminho lingüístico, já provou no dia-a-dia um conhecimento e uma habilidade lingüística muito desenvolvidos. É preciso salientar que aos 7 anos uma criança pode ter mostrado sua capacidade intelectual para aprender e fazer também outras coisas, não-relacionadas à linguagem. Algumas crianças no Nordeste do Brasil, por exemplo, aprendem a fazer rendas, seguindo padrões complicados, contando os pontos, numa clara prova de habilidade manual, memória e capacidade de aprender e executar tarefas dessa natureza.

As crianças, quer trabalhando, quer brincando, sabem o que fazem, não se intimidam diante de algo novo, aprendem a se virar, tomam a iniciativa de participar, aprendem a manusear ferramentas, jogos ou objetos com a precisão necessária para conseguir realizar o que pretendem. Têm senso de proporção, de direção, têm a noção de tempo e velocidade, sempre em função de alguma atividade que quer realizar. Para conseguir isso não é preciso treinamento de prontidão, nem orientação pedagógica: basta deixar a criança agir, atuar sobre os objetos.

A criança que entra na escola pode certamente levar um choque, por mais que os adultos digam que a escola é isso ou aquilo. Se ela for pobre, vier de uma comunidade que fala um dialeto que sofre discriminação por parte dos habitantes onde se situa a escola, seu caso será realmente dramático, trágico mesmo. Tudo o que ela conquistou até aquele momento será completamente ignorado, embora a escola possa dizer que está partindo do conhecimento de sua realidade. Descobrirá o preconceito desta quanto ao seu modo de falar, andar, vestir, agir, pensar, que no fundo será avaliado por isso, e sentirá uma dor profunda, porque ela, criança, perceberá que isso tudo acontece porque é pobre. A escola vai lhe dizer um dia que é burra, incapaz de aprender as coisas elementares que todo mundo sabe (sic!...), que tem problemas de discriminação visual, age como se visse as coisas espelhadas, conclusão a que chegou vendo que a criança confunde a escrita cursiva das letras b e d. A escola lhe dirá que tem problemas de discriminação auditiva porque troca as letras, não aprende a forma correta de escrever as palavras, concluindo, por fim, que é preciso começar tudo de novo com essa criança. Esquece-se seu passado, começa-se vida nova. Faz-se com a criança o mesmo que se faz com um relógio: reduz-se a zero, para que no prazo de um ano esteja pronta para receber seu diploma de alfabetizada! É claro que, nesse caminho, a escola vai criar mais problemas ainda para a pobre criança pobre e, inevitavelmente lhe atribuirá falta de boa vontade. A partir dos resultados negativos das avaliações que, para a criança, sempre acontecem nos momentos errados, mas que a professora tem de executar porque o calendário escolar, sintonizado com o relógio do tempo, assim a obriga a agir, a criança é finalmente considerada portadora de uma doença educacional chamada carência e, dessa forma submetida a métodos especiais. Esconde-se, no fundo, mais uma vez, o preconceito de que pobre é diferente e por isso precisa ser colocado em seu lugar, não podendo se beneficiar da companhia daqueles afortunados que falam o dialeto de prestígio, porque dessa maneira o aprenderá mais fácil e rapidamente e criará problemas de estratificação social na nossa sociedade, zelosa pelo que é propriedade de cada um, incluindo os "erros dialetais" do português.

Isso tudo a criança sente desse modo. Só a escola é cega. Mas ela tem o poder, e a criança a desgraça de ser pobre. Por isso, haverá um número elevado de reprovações no final do ano escolar, além, é claro, de um número significativo de crianças que logo perceberá que o jogo é desonesto e que o melhor é abandonar a luta e sair de vez e rapidamente da escola.

As crianças sentem, mas não sabem reagir lingüisticamente a isso. Quando crescerem e aprenderem, será tarde demais para voltar atrás e dizer tudo o que deviam.

A escola não só interpreta erradamente a realidade das crianças, como também não se preocupa com o que estas pensam dela e o que pretendem quando nela ingressam. Ela tem tudo pronto, tudo decidido por alguém que se desconhece. Ficará muito surpresa quando ouvir as crianças, pois estas sabem falar sério quando lhes permitem. Podem não dizer as coisas da mesma maneira que o adulto, nem com a mesma extensão, mas dizem com muita seriedade as suas verdades. Vale a pena fazer uma pesquisa nesse sentido. Por exemplo, deveria ser perguntado às crianças o que elas acham da escrita, para que ela serve na comunidade em que vivem e o que pretendem fazer conhecendo-a.

Uma criança que viu desde cedo sua casa cheia de livros, jornais, revistas, que ouviu histórias, que viu as pessoas gastando muito tempo lendo e escrevendo, que desde cedo brincou com lápis, papel, borracha e tinta, quando entra na escola, econtra uma continuação de seu modo de vida e acha muito natural e lógico o que nela se faz.

Uma criança que nunca viu um livro em sua casa, nunca viu seus pais lendo jornal ou revista, que muito raramente viu alguém escrevendo, que jamais teve lápis e papel para brincar, ao entar para a escola sabe que vai encontrar essas coisas lá, mas sua atitude em relação a isso é bem diferente da da criança citada no parágrafo anterior. E a maneira como a escola trata da sua adaptação pode lhe trazer apreensões profundas, até mesmo desilusões.

Uma criança pode pensar, ao entrar para a escola, que a escrita serve para contar histórias como aquelas que já ouviu, mas outra pode pensar que a escrita servirá para ela ser um office-boy, para tomar nota dos pedidos de compras no mercadinho, para assinar documentos e outras coisas semelhantes.

Além da escrita, devem-se investigar as expectativas dos alunos com relação aos diferentes modos de fala, às leituras, à Educação e à moral, à filosofia de vida que cada um espera ter para si, o que pretendem fazer quando crescerem e o que pretendem fazer na escola etc., etc.

A escola moderna se envolveu num emaranhado de teorias e métodos, mas se afastou, de fato, da realidade de seus alunos. O que faz a escola? Creio que nem ela própria sabe explicar. É preciso recuperar o fio da meada e começar a tecer de novo, não ao acaso, nem de maneira mais complicada do que o próprio mundo, mas mas na justa medida das coisas. Por exemplo, ensinar português é ensinar português e não fazer disso um campo de prova de teoria ou hipóteses psicológicas, pedagógicas ou seja lá o que for. Mas o que é ensinar português para pessoas que já sabem falar o português?

(...)

Luiz Carlos Cagliari, em Alfabetização e Lingüística. São Paulo: ed. Scipione, 2001, pp. 18-22.

2 comentários:

Unknown disse...

Maya agradeço ter permitido de ver seu blog, pois estava sem rumo pois necessito fazer uma resenha envolvendo a fonologia com a linguística ,e tem esse autor Luiz Carlos Cagliari. Nossa adorei !!!Obrigado !!!!!!!

Maya Felix disse...

Oi, Débora!

De nada, fico feliz que essa postagem tenha ajudado você! Estou às ordens, venha sempre! Um abraço,

Maya

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