Tudo misturado
Na reportagem, confunde-se reforma ortográfica com reforma da língua
Na reportagem, confunde-se reforma ortográfica com reforma da língua
As matérias sobre língua na mídia caracterizam-se freqüentemente por uma exagerada mistura de questões, o que as torna obscuras e inúteis. Às vezes, parece decisão proposital. Outras, que a confusão é fruto de brutal - e incompreensível - desconhecimento de fatos elementares. Um excelente exemplo é a matéria de VEJA 2025, de 12/09/2007.
Começa com notícias sobre a reforma ortográfica, que teria implicações profundas de ordem técnica e comercial. Logo depois, afirma que dominar a norma culta é condição mínima para o sucesso, que profissionais que "falam e escrevem certo, com lógica e riqueza vocabular", têm mais chance de chegar ao topo do que outros com a mesma qualificação, mas sem o domínio da palavra. Há observações sobre formas características de blogs e chats, sobre dicionários de várias línguas, informações sobre a reforma, uma lista de dez erros que enumera onze (repetida há anos e completamente heterogênea). Tudo misturado. Há também uma entrevista como David Crystal sobre aspectos da situação lingüística do mundo. O interessado deve ler seu livro A revolução da linguagem, e verá que ele também mistura muita coisa...
É impossível comentar a matéria em espaço menor do que o ocupado por ela. Seria necessário um trabalho bastante longo de organização dos temas, de esclarecimento de posições e de discussão dos palpites etc. Às vezes, seria necessário desmentir afirmações. Seguem-se algumas observações.
Pode ser verdade que o domínio da língua seja uma condição de sucesso, em alguns casos, mas o que têm a ver lógica e riqueza vocabular e domínio da palavra com a reforma ortográfica, ou mesmo com escrever certo? Na seqüência, a matéria fala de quedas de hífens e de acentos. Não há erros ortográficos, mas, se a tese do artigo for correta, alguma empresa contrataria o autor da matéria para fazer outra coisa que não fosse escrever sobre língua?
Não falta no texto a velha escorregada que consiste em confundir reforma ortográfica com reforma da língua. O leitor pode não acreditar, mas na página 89 pode-se ler que "a reforma do português (sic) ora em curso vai se defrontar com um desafio inédito". Mas a reforma da língua não está e nunca esteve em pauta!
Diversas autoridades e celebridades são ouvidas. As opiniões não convergem, como era de esperar. As declarações mais desastradas são as de Tony Belloto: "Creio que a unificação do português tem um sentido político positivo. Aumenta o conceito da língua como nação. Mas a língua é um organismo vivo e vai seguir em frente. No meu trabalho de compositor, a ortografia repercute pouco. Nas letras de rock, a gente trabalha com a informalidade, com a fala da rua".
Torço para que o músico tenha sido mal entendido, que o samba do crioulo doido que são essas declarações não seja dele, que seja resultado da má edição de uma entrevista. Tudo o que ele diz está errado ou é bem estranho: não há unificação do português; aumentar o conceito da língua como nação é totalmente nonsense (o que será uma língua como nação?); o que tem a ver a língua ser um organismo vivo com a questão da reforma ou da unificação? E qual seria a relação entre trabalhar com a informalidade, com a língua da rua, e a pouca repercussão da ortografia? Ortografia de língua informal é diferente?
Belloto apresenta - produz? - um programa sobre questões de língua em um canal desses educativos. Acho que vou começar a compor.
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Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Lingüística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua e de Os limites do discurso . Fale com Sírio Possenti: siriopossenti@terra.com.br
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