Autóctone
A menina atirou o lápis sobre o caderno e ficou olhando para a rua. Era um belo dia de outono e ela precisava escrever uma composição com a palavra "autóctone". Era um dia perfeito de outono e ela precisava ficar ali e escrever uma composição com a palavra autóctone. E para o dia seguinte.
Autóctone.
Aquilo não era uma palavra, era um empacamento, um solavanco verbal. Uma frase com "autóctone" devia ter avisos desde o começo, como os que colocam nas estradas antes de curvas perigosas ou defeitos na pista: "Cuidado, autóctone adiante". Quem chegasse a "autóctone" sem estar preparado arriscava-se a capotar-se e cair fora do texto. "Autóctone" era uma ameaça para leitor desavisado. "Autóctone" devia ser proibido. Ainda mais num dia de outono.
O que queria dizer "autóctone"?
Autóctone, autóctone...
Aurélio!
Autóctone. (Do gr. "autóchton" pelo lat. "autochtone". Adj. 2 g.) 1. Que é oriundo da terra onde se encontra...
Meu Deus... pensou a menina. Eu sou uma autóctone! Vivi todo este tempo sem saber que era uma autóctone.
-- Minha filha -- diria sua mãe. -- Que cara é essa?
Cara de autóctone. Não ia poder disfarçar. Confessaria para a sua melhor amiga, a Maura.
-- Descobri uma coisa horrível a meu respeito.
-- O quê? Conta!
-- Eu sou um autóctone.
-- Não!
-- Sou.
-- E isso pega?
-- Não faz diferença. Você também é uma autóctone.
-- EU?
Mas depois de descobrir o que era "autóctone" Maura daria um pulo de alegria, a nojenta.
Eu não sou. Eu não nasci aqui!
A menina faria a amiga jurar que não contaria para ninguém que ela era uma autóctone.
Autóctone.
Como é que alguém podia usar aquela palavra numa frase? Uma pessoa nunca mais era a mesma depois de dizer "autóctone". A vida terminava de um lado e começava do outro lado da palavra "autóctone". A menina suspirou. O dia ficava cada vez mais lindo e a folha de caderno à sua frente ficava cada vez mais vazia. Autóctone. Um cachorro oriundo da terra em que se encontrava, seria um au-autóctone?
Que bobagem. Precisava pensar. Precisava encher a folha do caderno. teve uma idéia. Escreveu: "A pessoa pode ser autóctone ou não autóctone, dependendo do lugar onde estiver".
Leu o que tinha escrito e depois acrescentou: "Tem gente que emigra só para não ser autóctone".
Depois apagou tudo. A professora, obviamente, queria uma composição a favor de "autóctone", não contra.
Começou outra vez:
"Nós, os autóctones..."
***
NOTA: Não tenho a referência mais apurada deste texto! Eu o recebi em um curso ministrado pela profª Ingedore Köch (Lingüística Textual), da Unicamp, em um congresso de Lingüística. Muuuuuuito interessante o que a profª Koch falou sobre a visão do ensino, o que se "espera" da criança em termos de reprodução ideológica em sala de aula, o que é ensinado como "certo" na relação com a língua e o que se estabelece entre a criança e a possibilidade da apreensão textual, seja na leitura, na interpretação ou na produção, desde muito cedo. Como sempre, "n" questionamentos sobre o papel da escola...
Um comentário:
Olá! Referência do texto: Luis Fernando Verissimo. O autóctone. In Revista Nova Escola, nº 40. São paulo, Fundação Victor Civita, junho de 1990.
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