I
Se a economia do mundo do século XIX foi constituída principalmente sob a influência da revolução industrial britânica, sua política e ideologia foram constituídas fundamentalmente pela Revolução Francesa. A Grã-Bretanha forneceu o modelo para as ferrovias e fábricas, o explosivo econômico que rompeu com as estruturas socioeconômicas tradicionais do mundo não-europeu; mas foi a França que fez suas revoluções e a elas deu suas idéias, a ponto de bandeiras tricolores
de um tipo ou de outro terem-se tornado o emblema de praticamente todas as nações emergentes, e as políticas européias (ou mesmo mundiais), entre 1789 e 1917, foram em grande parte lutas a favor e contra os princípios de 1789, ou ainda mais incendiários princípios de 1793. A França forneceu o vocabulário e os temas da política liberal e radical-democrática para a maior parte do mundo. A França deu o primeiro grande exemplo, o conceito e o vocabulário do nacionalismo. A França forneceu os códigos legais, o modelo de organização técnica e científica e o sistema métrico de medidas para a maioria dos países. A ideologia do mundo moderno atingiu, pela influência francesa, as antigas civilizações que até então resistiam às idéias européias. Esta foi a obra da Revolução Francesa. [grifos meus]
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O final do século XVIII foi uma época de crise para os velhos regimes da Europa e seus sistemas econômicos, e suas últimas décadas foram cheias de agitações políticas, chegando até o ponto de revoltas, de movimentos coloniais em busca de autonomia, às vezes atingindo o nível de secessão: não só nos EUA (1776-83) mas também na Irlanda (1782-4), na Bélgica em Liége
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Na medida em que a crise do velho regime não foi puramente um fenômeno francês, há algum peso nestas observações. Igualmente se pode argumentar que a Revolução Russa de 1917 (que ocupa uma posição de importância análoga em nosso século) foi meramente o mais dramático de toda uma série de movimentos semelhantes, tais como os que – alguns anos antes de 1917 – finalmente puseram fim aos antigos impérios turco e chinês. Ainda assim, há aí um equívoco. A Revolução Francesa pode não ter sido um fenômeno isolado, mas foi muito mais fundamentalmente do que outros fenômenos contemporâneos e suas conseqüências foram, portanto, muito mais profundas. Em primeiro lugar, ela aconteceu no mais populoso e poderoso Estado da Europa (com exceção da Rússia). Em 1789, cerca de um em cada cinco europeu era francês. Em segundo lugar, ela foi, diferentemente de todas as revoluções que a precederam e a seguiram, uma revolução social de massa, e incomensuravelmente mais radical do que qualquer levante comparável. Não foi casual que os revolucionários americanos e os jacobinos britânicos que emigraram para a França, devido a suas simpatias políticas, tenham sido vistos, na França, como moderados. Tom Paine era um extremista na Grã-Bretanha e na América; mas, em Paris, ele estava entre os mais moderados dos girondinos. Resultaram das revoluções americanas, grosseiramente falando, países que continuaram a ser o que eram, apenas em controle político dos britânicos, espanhóis e portugueses. O resultado da Revolução Francesa foi o de que era de Balzac substitui a era de Mme. Dubarry.
Em terceiro lugar, entre todas as revoluções contemporâneas, a Revolução Francesa foi a única ecumênica. Seus exércitos partiram para revolucionar o mundo; suas idéias de fato revolucionaram. A revolução americana foi um acontecimento crucial na história americana, mas (exceto para os países diretamente envolvidos nela ou por ela) deixou poucos traços relevantes em outras partes. A Revolução Francesa é um marco em todos os países. Suas repercussões, ao contrário daquelas da revolução americana, ocasionaram levantes que levaram à libertação da América Latina depois de 1808. Sua influência direta se espalhou até Bengala, onde Ram Mohan Roy foi inspirado a fundar o primeiro movimento de reforma hindu, predecessor do nacionalismo indiano moderno. (Quando visitou a Inglaterra, em 1830, ele institiu em viajar num navio francês para demonstrar o entusiasmo pelos princípios da Revolução). A Revolução Francesa foi, como bem disse, "o primeiro grande movimento de idéias da cristandade ocidental que teve algum efeito real sobre o mundo islâmico", isto quase que de imediato. Por volta da metade do século XIX, a palavra turca vatan, que até então simplesmente descrevia o local de nascimento ou a residência de um homem, tinha começado a se transformar, sob a influência, em algo parecido com patrie; o termo “liberdade”, antes de 1800, sobretudo uma expressão legal que denotava o oposto de “escravidão”, tinha começado a adquirir um novo conteúdo político. Sua influência direta é universal, pois ela forneceu o padrão para todos os movimentos revolucionários subseqüentes, tendo incorporado suas lições (interpretadas segundo o gosto de cada um) ao socialismo e ao comunismo modernos. [grifos meus]
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FONTE: HOBSBAWM, E. J. A Revolução Francesa. 3ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2000, pp 7 -11.
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