Os cristãos-simulacro e os bons samaritanos de hoje
De uma semana pra cá, ocorreram fatos que me fizeram refletir sobre uma idéia que os cristãos, sobretudo os evangélicos, em geral acham pouco agradável. Tenho me deparado com pessoas de credos diferentes e esses têm sido "luz e sal", verdadeiramente, em minha vida.
Semana passada, tive um problema de saúde, e precisei de ajuda. Cheguei a ligar para uma pessoa que conheci em uma igreja próxima à minha casa, mas foram meus vizinhos, que não são evangélicos e que eu nem sei se são cristãos, que me socorreram com fraternal gentileza.
Há cerca de duas ou três semanas, entrei em um debate sobre o aborto em uma comunidade do Orkut. A comunidade, de professores, tem pessoas dos mais diferentes credos: espíritas, judeus, católicos e, também, ateus. Discuti, com esses, acerca de um tema difícil, que suscita paixões. Houve quem dissesse que o grande problema da humanidade era a religião, imiscuída no Estado e na gerência de setores "laicos", conduzindo princípios éticos e manipulando as leis em favor de atrasos e ideias retrógradas. Tudo isso foi dito, e mantive minha posição contra o aborto. A discussão foi muito boa e, apesar das visíveis discordâncias, respeito e educação foram a tônica do debate, que não deixou de ser apaixonado.
Já numa comunidade de cristãos evangélicos, ao debater sobre política nacional, deparei-me com demonstrações lamentáveis de hostilidade, incompreensão e grosseria, vindas de pessoas que colam na camisa, em letras garrafais, as palavras "evangélico", "pastor", "presbítero", "evangelista" e "missionário", e delas se orgulham como se, por si só, os nomes juntassem aos objetos nominados as qualidades desejadas.
Tenho amigos que não são cristãos, mas em horas de tristeza sabem muito mais ser "abrigos no deserto" que outros, que dormem com a Bíblia na cabeceira da cama.
Na universidade, onde estive hoje, participei de uma reunião de pesquisa e, conversando acerca de tarefas a ser feitas, percebi a gentileza e a generosidade de colegas, professores e pesquisadores que não são religiosos, participam do carnaval, tomam cerveja e ouvem samba.
No supermercado, na farmácia, no ônibus, na internet, em todos os lugares, eu me surpreendo com a beleza e a bondade de seres humanos, homens e mulheres, jovens e velhos, que jamais pisaram em uma igreja evangélica mas que não tratam seu semelhante como inimigo, e não lhe são indiferentes na dificuldade. Ao contrário, agem como o samaritano que, ao ver o homem ferido à beira da estrada, escolheu socorrê-lo, e o fez porque não enchia o peito e proclamava sua superioridade religiosa sobre todos, como o judeu que passou ao largo. Pôde, assim, perceber e se condoer com o sofrimento e a deficiência daquele que, verdadeiramente, foi seu próximo.
Falta aos filhos de Deus, ou pelo menos aos que tamanha honra se dão, invocando sobre si a paternidade divina e o parentesco espiritual com Cristo, compreender que quase sempre os tais ímpios têm sido mais sal e luz do que eles.
Gosto de ir à Igreja. Há muita gente boa lá. Há pessoas generosas, amigas, sinceras, e há os que não são nada disso. O que me faz continuamente pensar se a Igreja é um lugar melhor que os outros ou é apenas mais um lugar, com paredes e bancos, banheiros e portas, é que na reunião de condomínio do meu prédio, na mesma proporção, tenho encontrado pessoas generosas, amigas e sinceras e outras, que não são nada disso.
Vejo o dia em que esta igreja de hoje, que arrota sua própria condição e dela se alimenta, fechada em seus rituais vazios de beleza retórica e amor-simulacro, será jogada no chão e pisada, se é que isso já não ocorre.
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É comprida a estrada que vai desde a intenção até à execução.
Jean Molière