O oligarca perfeito
"Sarney!, Sarney!, Sarney!" A multidão na praça grita em coro enquanto o político, no palanque, agita os braços em triunfo. É o começo do filme Maranhão 66, de Glauber Rocha, documentário que registra sangue novo, cheio de boas promessas, no governo do Maranhão. O sangue novo em questão é o do jovem (36 anos) José Sarney de Araújo Costa, que tomava posse no cargo. "O Maranhão não suportava mais o contraste de suas fabulosas riquezas potenciais com a miséria, com a angústia, com a fome, com o desespero", recita o novo governador. A câmera mostra a desolação das casas de pau a pique, seus miseráveis habitantes zanzando pelas ruas de terra. "O Maranhão não quer mais a desonestidade no governo, a corrupção… O Maranhão não quer a violência como instrumento de política. O Maranhão não quer mais a miséria, o analfabetismo, as mais altas taxas de mortalidade infantil." O tom é de anúncio de uma nova era. A câmera mostra prisões desumanas, banheiros sujos, hospitais precários.
Se há um político brasileiro que elaborou inteligentemente o seu projeto, e por isso mesmo pode considerá-lo coroado de êxito, é o senador José Sarney. O projeto, já se adivinha, é o do atraso. O jovem Tancredi, personagem do romance O Leopardo, de Tomasi di Lampedusa, traduzia o mesmo objetivo na célebre frase: "Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude". O atraso à brasileira vai mais fundo. A ideia não é que as coisas fiquem como estão; é que melhorem sempre para os governantes, mesmo que piorem para os governados. Há muitos campeões do atraso na política brasileira. Sarney é o campeão dos campeões, tanto por antiguidade quanto, sobretudo, por mérito.
Como é do conhecimento geral, as promessas de nova era no Maranhão, registradas nos onze minutos do filme de Glauber Rocha, não foram cumpridas. Ao contrário, a já longa era Sarney logrou a proeza de empurrar o Maranhão para a rabeira entre os estados brasileiros, suplantando Piauí e Alagoas. A glória de Sarney, enquanto isso, só fez aumentar, esparramando-se para a parentela. Ao passear por São Luís e outras cidades maranhenses, o visitante deparará com ruas, escolas, hospitais, bibliotecas e edifícios públicos com o nome de José, Marly, Kiola, Roseana e Fernando Sarney; entre um programa e outro da TV Mirante, de propriedade da família, folheará o jornal O Estado do Maranhão, idem; e terminará o périplo com uma chegada ao Convento das Mercês, construção do século XVII doada a uma fundação criada por Sarney para a salvaguarda de seus documentos, livros, objetos, e, ao fim e ao cabo, dele próprio – uma vez que nela está reservado espaço destinado à sua tumba.
Mas não é isso, ou apenas isso, que converte Sarney em campeão dos campeões. O pulo do gato está alhures. Os chefões desse naipe – nossos tradicionais "coronéis" – costumam adotar a prepotência como estilo. Antonio Carlos Magalhães era assim. Sarney, de sua parte, ataca de "homem cordial". Ninguém mais afável. A esse traço acrescenta-se o do literato, membro da Academia Brasileira de Letras. Suas alianças, por essa senda, avançam para abarcar intelectuais e artistas, e foi por aí que Glauber Rocha, já então o maior dos cineastas brasileiros, foi seduzido a fazer o filme de 1966. Enfim, ao homem cordial e ao literato junta-se o estadista. Ele já foi presidente da República; a pose é de impecável cumpridor do que memoravelmente alcunhou de "liturgia do cargo". A capa de homem cordial/literato/estadista cobre o coronel como um jaquetão.
Sarney está na ordem do dia, se é que algum dia saiu dela. Pela terceira vez é presidente do Senado, e sua ascensão ao cargo veio junto com um festival de denúncias, envolvendo a instituição como um todo mas com sua figura insistentemente no centro da ação – quer por sua responsabilidade na prática de nomear diretores da casa em chorrilho, quer pelo fato de ter enviado seguranças do Senado para vigiar propriedades suas em São Luís, ou de ter usado uma diretora da casa em suas campanhas eleitorais. Miudezas. O projeto de transpor o atraso maranhense para as instituições federais está em curso já há décadas, desde que ele ganhou projeção nacional, e não será interrompido. Sarney tem a seu favor a pose, a palavra e uma infalível rede de proteção político-burocrático-social-literária. Vargas Llosa dizia que o PRI, partido que dominou o México na maior parte do século XX, tinha inventado a "ditadura perfeita", com seu jeito de governar incontrastavelmente dando a impressão de que o fazia dentro da ordem institucional. Sarney criou o oligarca perfeito.
Texto de Roberto Pompeu de Toledo, publicado na revista Veja de 08/04/2009.
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