Gaúchos e Cariocas
É preciso dizer que estávamos naquela brumosa terra de ninguém, que fica depois do décimo ou décimo-quinto chope. Tão brumosa que não dá mais para distinguir entre o décimo e o décimo-quinto. Tínhamos sido apresentados no começo da noite mas já éramos amigos de infância. Em poucas horas nossa amizade passara por vários estágios, desde o "leste Memórias de Adriano?" até as piores confidências, e agora nos comportávamos como confrades, como se nossa amizade fosse mais antiga que nós mesmos. Isto é, estávamos brigando.
- Vocês gaúchos...
- O que é que tem gaúcho?
- Pra mim gaúcho é tudo veado.
- Não radicaliza.
- Se tem que dizer que é macho, é porque não é.
- Lá no sul se diz que numa briga de gaúcho, paulista, mineiro e carioca, o gaúcho bate, o paulista apanha e o mineiro tenta apartar.
- E o carioca?
- Fugiu.
- Viu só? Pensam que são mais machos que os outros. Diz que as bichas cariocas estavam invadindo o seu mercado: "Voltem para o Rio. Go Home!" Aí as bichas cariocas reagiram: "Ah, é? Então tirem as gaúchas de lá."
- Está aí, fugiram. Mas isso tudo é mágoa porque são os gaúchos que mandam neste país. Vocês estão assim desde que nós amarramos os cavalos ali no obelisco.
- Aliás, essa fixação no obelisco...
- Gaúcho é o único brasileiro sério.
- Sem graça não é sério.
- Só o gaúcho fala português. Essa língua de vocês não existe. Paulista põe "i" onde não tem. Vocês falam chiando. Onde tem um "r" botam dois e onde tem dois botam quatro.
- Vocês falam espanhol errado e pensam que é português!
- Mas o que a gente diz é pra valer. Não é como carioca que diz uma coisa e quer dizer outra.
- Ah, é?
- É. Quando carioca encontra alguém, diz: "Meu querido!", quer dizer que não se lembra do nome. "Precisamos nos ver" quer dizer "está combinado, eu não procuro você e você não me procura".
- O que vocês não agüentam é que nós, cariocas, somos informais, bem-humorados...
- Isso é mito. Entra num "Grajaú-Leblon" lotado na Nossa Senhora de Copacabana, às três da tarde, no verão, que eu quero ver o bom humor.
- Não radicaliza.
- Os mitos cariocas. O Zico, por exemplo...
- Eu sabia. Eu sabia que ia chegar o Zico!
- O Zico é uma entidade abstrata criada pelo inconsciente coletivo do Maracanã.
- O Campeão do Mundo. Campeão do Mundo!
- Porque não entrou nenhum inglês no calcanhar dele. Se encosta um, o Zico cai.
- É. O bom é o Batista.
- Não troco um Batista por dois Zico.
- Ai meu Deus. Ai meu Deus!
- Outra coisa: mulher.
- Claro. Mulher. A mulher carioca não vale nada.
- Vale. Mas é sempre da mesma cor. Mulher tem que ir mudando de cor com as estações. Quando chega o verão as gaúchas vão tostando aos poucos, como carne num braseiro de chão, até estar no ponto. Só ficam prontas mesmo em fevereiro. A carioca está sempre bem passada. É como comer churrasco em bandeja.
- É. A medida de todas as coisas, para o gaúcho, é o churrasco. A comida mais sem imaginação que existe.
- Vai dizer que comida é isto que vocês comem aqui?
- Mas bá.
Eu estava levando o chope à boca e parei.
- O que foi que você disse?
- Eu? Nada.
- Você disse "mas bá".
- Não disse.
- Disse. Eu ouvi nitidamente um "mas bá".
- Está bem. Eu disse.
- De onde você é?
- Dom Pedrito.
Estava no Rio há menos de dois anos e chiava como uma locomotiva no cio. Mas não me senti triunfante. Me senti derrotado. Eu estranhara ele não ter dito: "Se você gosta tão pouco do Rio, o que é que está fazendo aqui?" Eu não poderia responder a não ser com a verdade, que era fascinado pelo Rio. Uma característica de gaúcho é que gaúcho é fascinado pelo Rio. E ali estava ele como prova que depois do fascínio vinha a rendição, a vitória carioca. Acabou a discussão. Nos despedimos e saímos, cada um cambaleando para um lado. Na saída ele ainda disse:
- Precisamos nos ver...
***
Crônica de Luis Fernando Veríssimo publicada no livro Comédias da Vida Privada - 101 crônicas escolhidas. Porto Alegre: L & PM, 1994, p. 159-161
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