Creio que não existe nada de mais belo, de mais profundo, de mais simpático, de mais viril e de mais perfeito do que o Cristo; e eu digo a mim mesmo, com um amor cioso, que não existe e não pode existir. Mais do que isto: se alguém me provar que o Cristo está fora da verdade e que esta não se acha n'Ele, prefiro ficar com o Cristo a ficar com a verdade. (Dostoievski)

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2 de jun. de 2008

Luís Fernando Verissimo [6]


Gaúchos e Cariocas


É preciso dizer que estávamos naquela brumosa terra de ninguém, que fica depois do décimo ou décimo-quinto chope. Tão brumosa que não dá mais para distinguir entre o décimo e o décimo-quinto. Tínhamos sido apresentados no começo da noite mas já éramos amigos de infância. Em poucas horas nossa amizade passara por vários estágios, desde o "leste Memórias de Adriano?" até as piores confidências, e agora nos comportávamos como confrades, como se nossa amizade fosse mais antiga que nós mesmos. Isto é, estávamos brigando.

- Vocês gaúchos...

- O que é que tem gaúcho?

- Pra mim gaúcho é tudo veado.

- Não radicaliza.

- Se tem que dizer que é macho, é porque não é.

- Lá no sul se diz que numa briga de gaúcho, paulista, mineiro e carioca, o gaúcho bate, o paulista apanha e o mineiro tenta apartar.

- E o carioca?

- Fugiu.

- Viu só? Pensam que são mais machos que os outros. Diz que as bichas cariocas estavam invadindo o seu mercado: "Voltem para o Rio. Go Home!" Aí as bichas cariocas reagiram: "Ah, é? Então tirem as gaúchas de lá."

- Está aí, fugiram. Mas isso tudo é mágoa porque são os gaúchos que mandam neste país. Vocês estão assim desde que nós amarramos os cavalos ali no obelisco.

- Aliás, essa fixação no obelisco...

- Gaúcho é o único brasileiro sério.

- Sem graça não é sério.

- Só o gaúcho fala português. Essa língua de vocês não existe. Paulista põe "i" onde não tem. Vocês falam chiando. Onde tem um "r" botam dois e onde tem dois botam quatro.

- Vocês falam espanhol errado e pensam que é português!

- Mas o que a gente diz é pra valer. Não é como carioca que diz uma coisa e quer dizer outra.

- Ah, é?

- É. Quando carioca encontra alguém, diz: "Meu querido!", quer dizer que não se lembra do nome. "Precisamos nos ver" quer dizer "está combinado, eu não procuro você e você não me procura".

- O que vocês não agüentam é que nós, cariocas, somos informais, bem-humorados...

- Isso é mito. Entra num "Grajaú-Leblon" lotado na Nossa Senhora de Copacabana, às três da tarde, no verão, que eu quero ver o bom humor.

- Não radicaliza.

- Os mitos cariocas. O Zico, por exemplo...

- Eu sabia. Eu sabia que ia chegar o Zico!

- O Zico é uma entidade abstrata criada pelo inconsciente coletivo do Maracanã.

- O Campeão do Mundo. Campeão do Mundo!

- Porque não entrou nenhum inglês no calcanhar dele. Se encosta um, o Zico cai.

- É. O bom é o Batista.

- Não troco um Batista por dois Zico.

- Ai meu Deus. Ai meu Deus!

- Outra coisa: mulher.

- Claro. Mulher. A mulher carioca não vale nada.

- Vale. Mas é sempre da mesma cor. Mulher tem que ir mudando de cor com as estações. Quando chega o verão as gaúchas vão tostando aos poucos, como carne num braseiro de chão, até estar no ponto. Só ficam prontas mesmo em fevereiro. A carioca está sempre bem passada. É como comer churrasco em bandeja.

- É. A medida de todas as coisas, para o gaúcho, é o churrasco. A comida mais sem imaginação que existe.

- Vai dizer que comida é isto que vocês comem aqui?

- Mas bá.

Eu estava levando o chope à boca e parei.

- O que foi que você disse?

- Eu? Nada.

- Você disse "mas bá".

- Não disse.

- Disse. Eu ouvi nitidamente um "mas bá".

- Está bem. Eu disse.

- De onde você é?

- Dom Pedrito.

Estava no Rio há menos de dois anos e chiava como uma locomotiva no cio. Mas não me senti triunfante. Me senti derrotado. Eu estranhara ele não ter dito: "Se você gosta tão pouco do Rio, o que é que está fazendo aqui?" Eu não poderia responder a não ser com a verdade, que era fascinado pelo Rio. Uma característica de gaúcho é que gaúcho é fascinado pelo Rio. E ali estava ele como prova que depois do fascínio vinha a rendição, a vitória carioca. Acabou a discussão. Nos despedimos e saímos, cada um cambaleando para um lado. Na saída ele ainda disse:

- Precisamos nos ver...

***

Crônica de Luis Fernando Veríssimo publicada no livro Comédias da Vida Privada - 101 crônicas escolhidas. Porto Alegre: L & PM, 1994, p. 159-161

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