Resistindo ao choque
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A jornalista e ativista canadense Naomi Klein analisa o novo estágio do capitalismo pós-11 de setembro: a privatização do desastre
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Seu nome circula em todo debate que questiona a arrogância do pensamento único e a imposição do neoliberalismo como modelo econômico irrevogável na era da globalização. Naomi Klein, 38, tornou-se mundialmente conhecida depois do sucesso de Sem logo - A tirania das marcas em um planeta vendido. Lançado em 2001 e traduzido para 28 idiomas, o livro superou a marca de um milhão de cópias vendidas, fato surpreendente para um volume de 500 páginas que se propõe a denunciar em detalhes os efeitos nocivos do branding, além das práticas de extorsão e exploração do trabalho de corporações como Nike, The Gap, Microsoft e McDonalds. Tornou-se rapidamente um dos maiores manifestos do movimento anti-globalização.
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Dois anos após o lançamento de uma pequena coletânea de artigos escritos para imprensa, Cercas e janelas, chega ao Brasil a tradução de seu terceiro livro, A terapia do choque - A ascensão do capitalismo do desastre, resultado de mais de seis anos de pesquisas sobre as reações de governos alinhados à ideologia neoliberal aos desastres cada vez mais freqüentes - da guerra no Iraque ao tsunami. A autora analisa a estreita relação dessas reações com a teoria dos choques econômicos proposta por Milton Friedman, prêmio Nobel de Economia em 1976 e um dos fundadores da ortodoxa Escola de Chicago; teoria esta que, segundo a autora, guardaria semelhanças assombrosas com as técnicas de tortura da CIA, descobertas há pouco tempo. Ligando neoliberalismo ao uso da violência, parte significativa do livro é dedicada à história recente dos golpes militares na América Latina, em especial o Chile do governo Pinochet, onde teria ocorrido o primeiro "laboratório vivo" para a implantação das idéias radicais de Friedman.
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Klein contribui regularmente para o jornal britânico The Guardian e para revista norte-americana The Nation. Co-produziu com o marido, Avi Lewis, o documentário Sin Patrón - The Take, que relata a ocupação de fábricas argentinas, falidas após a crise econômica de 2001, por parte de seus trabalhadores. Possui doutorado em Direitos Civis pela Universidade King's College de Nova Scotia, no Canadá, e lecionou como convidada na London School of Economics.
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Nesta entrevista exclusiva dada à CULT por telefone, de sua casa em Toronto, durante uma pausa em sua agenda de viagens, ela fala sobre o conceito de capitalismo de desastre, sua relação pessoal com o tema durante sua estada na Argentina, os impasses da questão ambiental e as possíveis alternativas ao neoliberalismo que podem surgir com os governos de esquerda da América Latina.
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A jornalista e ativista canadense Naomi Klein analisa o novo estágio do capitalismo pós-11 de setembro: a privatização do desastre
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Seu nome circula em todo debate que questiona a arrogância do pensamento único e a imposição do neoliberalismo como modelo econômico irrevogável na era da globalização. Naomi Klein, 38, tornou-se mundialmente conhecida depois do sucesso de Sem logo - A tirania das marcas em um planeta vendido. Lançado em 2001 e traduzido para 28 idiomas, o livro superou a marca de um milhão de cópias vendidas, fato surpreendente para um volume de 500 páginas que se propõe a denunciar em detalhes os efeitos nocivos do branding, além das práticas de extorsão e exploração do trabalho de corporações como Nike, The Gap, Microsoft e McDonalds. Tornou-se rapidamente um dos maiores manifestos do movimento anti-globalização.
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Dois anos após o lançamento de uma pequena coletânea de artigos escritos para imprensa, Cercas e janelas, chega ao Brasil a tradução de seu terceiro livro, A terapia do choque - A ascensão do capitalismo do desastre, resultado de mais de seis anos de pesquisas sobre as reações de governos alinhados à ideologia neoliberal aos desastres cada vez mais freqüentes - da guerra no Iraque ao tsunami. A autora analisa a estreita relação dessas reações com a teoria dos choques econômicos proposta por Milton Friedman, prêmio Nobel de Economia em 1976 e um dos fundadores da ortodoxa Escola de Chicago; teoria esta que, segundo a autora, guardaria semelhanças assombrosas com as técnicas de tortura da CIA, descobertas há pouco tempo. Ligando neoliberalismo ao uso da violência, parte significativa do livro é dedicada à história recente dos golpes militares na América Latina, em especial o Chile do governo Pinochet, onde teria ocorrido o primeiro "laboratório vivo" para a implantação das idéias radicais de Friedman.
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Klein contribui regularmente para o jornal britânico The Guardian e para revista norte-americana The Nation. Co-produziu com o marido, Avi Lewis, o documentário Sin Patrón - The Take, que relata a ocupação de fábricas argentinas, falidas após a crise econômica de 2001, por parte de seus trabalhadores. Possui doutorado em Direitos Civis pela Universidade King's College de Nova Scotia, no Canadá, e lecionou como convidada na London School of Economics.
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Nesta entrevista exclusiva dada à CULT por telefone, de sua casa em Toronto, durante uma pausa em sua agenda de viagens, ela fala sobre o conceito de capitalismo de desastre, sua relação pessoal com o tema durante sua estada na Argentina, os impasses da questão ambiental e as possíveis alternativas ao neoliberalismo que podem surgir com os governos de esquerda da América Latina.
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CULT - Um dos principais objetivos do seu livro é mostrar que os conceitos de neoliberalismo e democracia são internamente incompatíveis, certo?
Naomi Klein - O propósito principal do livro é contestar a alegação central da máquina de propaganda neoliberal, que procura identificar pessoas livres com o que eles chamam de mercado livre. Tento mostrar que democracia e neoliberalismo entram diretamente em conflito.
CULT - Essa forma de capitalismo não nasce da liberdade e sim do uso da força...
NK - Sim, uso da força e uso de crises. A razão pela qual me concentro em crises é porque elas criam uma zona livre de formas democráticas, um estado de emergência no qual regras democráticas não se aplicam. Mesmo que seja uma democracia formal, no papel, os agentes políticos podem suspender tais regras para impor suas medidas.
CULT - Por que a implementação dessas medidas depende tanto de crises, sejam naturais ou forjadas? Por que precisariam até mesmo do uso tirânico de forças?
NK - Porque as pessoas resistem a essas medidas quando têm a oportunidade e a possibilidade de se organizar. No livro, cito o economista John Williamson, que criou a expressão "Consenso de Washington". Ele diz que "devemos começar a pensar em aumentar as crises de hiperinflação a fim de colher os benefícios da reforma", em referência direta ao Brasil como possível candidato a essa estratégia - o que achei muito interessante. A razão pela qual os estados de exceção ou de emergência são tão importantes vem do fato de que as pessoas se organizam para proteger seus interesses. Essa é a ironia. A teoria do mercado livre está baseada na idéia de que as sociedades devem ser organizadas de tal maneira a permitir que as pessoas lutem por seus próprios interesses. O problema é que isso é válido apenas parcialmente, pois quando as pessoas defendem alguns interesses específicos, como melhoria de condições de trabalho, manutenção de serviços públicos, entram em ação as medidas de exceção. Não é uma idéia complicada. As táticas de choque são empregadas porque as políticas neoliberais não têm o apoio da maioria. Algumas peças da plataforma têm apoio, mas, em geral, privatizações, cortes de gastos em serviços sociais, livre comércio, não são medidas populares. De modo que é preciso haver estratégias alternativas para contornar a democracia e é aí que as crises entram.
CULT - Desde o começo do livro você deixa claro que a expressão "doutrina do choque" não se trata apenas de uma metáfora. De onde veio esta idéia de propor a relação entre as técnicas de tortura da CIA e a implementação da idéias econômicas de Milton Friedman?
NK - Parte veio por morar na Argentina, quando começou a invasão do Iraque. Era um momento muito particular no país, em 2002, porque se vivia uma crise econômica e, ao mesmo tempo, a abertura para uma discussão muito mais abrangente sobre o período da ditadura do que antes. A Argentina tem um movimento de direitos humanos muito forte, mas nos anos 90 esses grupos ainda eram politicamente marginais. O debate sobre o período da ditadura estava concentrado na questão dos direitos humanos, mas quando a economia entrou em colapso, a discussão foi ampliada e as pessoas começaram a fazer conexões entre o modelo econômico que fracassou de maneira tão retumbante e o período da ditadura quando esse modelo foi introduzido. E o que se ouvia constantemente era que essas políticas econômicas foram instauradas mediante o uso da violência, do choque. Quando a guerra do Iraque começou, os argentinos fizeram comparações entre o que aconteceu no país nos anos 1970 e o que estava acontecendo no Iraque. Foi isso que me fez querer entender as conexões entre os diversos tipos de choque, pois já estavam sendo feitas nas ruas da Argentina [sic]. Era uma maneira nova de interpretar a história - eu sabia da ditadura militar, mas não sabia que a agenda econômica era tão clara. No livro cito a carta aberta de Rodolfo Walsh à Junta Militar. Naquele tempo, em Buenos Aires, essa carta tomou vida própria: era lida em parques, assembléias de bairros, na frente das casas de generais, no rádio. Isso me fez querer entender essas conexões e querer viajar ao Iraque. Alguns amigos jornalistas argentinos, especialmente Claudia Acuña, descreveram como era difícil perceber as razões por trás do terror quando se está vivendo a situação. No momento em que dizia isso, Paul Bremer chegava ao Iraque e anunciava uma transformação econômica radical, dizendo que o país estava aberto para negócios. Mesmo assim, toda a atenção jornalística estava concentrada na guerra e não no programa econômico. Então senti que, depois de ter aprendido essa lição na Argentina, tinha a responsabilidade, como jornalista e escritora, de ir ao Iraque e pesquisar a verdadeira causa da violência. Foi depois dessa experiência que li o manual de interrogatório da CIA, pois eu estava no Iraque quando estourou o escândalo de Abu Ghraib.
CULT - O que significa exatamente "capitalismo do desastre"? É um conceito realmente novo ou é apenas uma nova expressão para uma velha premissa capitalista? Afinal, devastações e crises sempre criaram oportunidades de negócio, são internos ao processo de acumulação capitalista.
NK - Acho que o conceito de "destruição criativa", de Joseph Schumpeter, está muito ligado ao que descrevo. No sentido de que o capitalismo cria crises, de que executa constantemente criação e destruição. Mas estou falando de algo menos orgânico que isso. Trata-se aqui de uma estratégia política deliberada, de uma filosofia de poder; não apenas de ciclos naturais do capitalismo, em que uma nova tecnologia destrói um modelo econômico anterior e, a partir dessa destruição, um novo nível de criação surge. Trata-se de um conceito que foi profundamente compreendido e articulado por Williamson: que você precisa de uma crise para aprovar um conjunto específico de diretrizes econômicas. Acho que há algo de novo e antigo no que estou documentando. Veja o que aconteceu com após o furacão Katrina, exemplo clássico do capitalismo do desastre. Não considero o Katrina um desastre "natural" porque envolveu uma clara omissão do Estado - no sentido de que as barragens estavam deterioradas. Imediatamente depois do ocorrido, um político republicano, Richard Baker, disse "não pudemos limpar os projetos de conjuntos habitacionais, mas Deus fez isso por nós". Isso é o capitalismo do desastre! É uma idéia muito velha, que já existia na mentalidade colonial. Na América do Norte, os colonos que ocuparam a Nova Inglaterra tinham uma teoria religiosa sobre a varíola, pois a causa principal de mortalidade dos índios era a doença. Nos diários da época, falava-se da moléstia como uma dádiva de Deus. De diversas maneiras, estavam usando a mesma formulação que o político republicano. Quando a varíola acabou com diversas comunidades do Iroquois e a terra deles foi invadida pelos colonos, Deus foi invocado, e o desastre foi visto com um ato divino. Então, sim, isso não é novidade [risos]. Mas, o que há de novo aqui, e que vimos em Nova Orleans, é que não apenas o desastre foi utilizado para a privatização do sistema educacional e habitacional, mas a resposta ao próprio desastre foi vista como oportunidade de mercado. E essa é realmente a última fronteira para o neoliberalismo. Todas as partes do estado foram privatizadas: estradas, eletricidade, telefone, água. Havia sobrado apenas as funções fundamentais: os militares, a polícia, os bombeiros. Mas agora estamos vendo aquilo que incluo nesse complexo do capitalismo do desastre: negócios que se alimentam desse conjunto de crises e desastres para crescer. Os próprios desastres são a última fronteira para a privatização. Você tem bombeiros privados, a Blackwater [empresa militar privada], que apareceu em Nova Orleans pronta para substituir a policia, o Helpjet, um serviço que proporciona um plano de fuga rápido e luxuoso, com direito a limosine, no caso de um furacão. Acho que estamos vendo agora, na crise dos alimentos, no sentido de que esse desastre torna altamente lucrativo o setor corporavito do agrobusiness. Acho que precisamos entender os desafios que enfrentamos, principalmente relativos à mudança climática. Está muito claro que existe uma parcela da economia cujo desempenho é favorecido conforme a situação piora. Não são apenas as empresas de armamentos. São as companhias de petróleo, de agronegócios, de biocombustíveis, farmacêuticas, empreiteiras, companhias de segurança. Precisamos mapear essas empresas que, com seu poderoso lobby, impedem mudanças efetivas que nos tiram desse processo de crises contínuas.
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Naomi Klein - O propósito principal do livro é contestar a alegação central da máquina de propaganda neoliberal, que procura identificar pessoas livres com o que eles chamam de mercado livre. Tento mostrar que democracia e neoliberalismo entram diretamente em conflito.
CULT - Essa forma de capitalismo não nasce da liberdade e sim do uso da força...
NK - Sim, uso da força e uso de crises. A razão pela qual me concentro em crises é porque elas criam uma zona livre de formas democráticas, um estado de emergência no qual regras democráticas não se aplicam. Mesmo que seja uma democracia formal, no papel, os agentes políticos podem suspender tais regras para impor suas medidas.
CULT - Por que a implementação dessas medidas depende tanto de crises, sejam naturais ou forjadas? Por que precisariam até mesmo do uso tirânico de forças?
NK - Porque as pessoas resistem a essas medidas quando têm a oportunidade e a possibilidade de se organizar. No livro, cito o economista John Williamson, que criou a expressão "Consenso de Washington". Ele diz que "devemos começar a pensar em aumentar as crises de hiperinflação a fim de colher os benefícios da reforma", em referência direta ao Brasil como possível candidato a essa estratégia - o que achei muito interessante. A razão pela qual os estados de exceção ou de emergência são tão importantes vem do fato de que as pessoas se organizam para proteger seus interesses. Essa é a ironia. A teoria do mercado livre está baseada na idéia de que as sociedades devem ser organizadas de tal maneira a permitir que as pessoas lutem por seus próprios interesses. O problema é que isso é válido apenas parcialmente, pois quando as pessoas defendem alguns interesses específicos, como melhoria de condições de trabalho, manutenção de serviços públicos, entram em ação as medidas de exceção. Não é uma idéia complicada. As táticas de choque são empregadas porque as políticas neoliberais não têm o apoio da maioria. Algumas peças da plataforma têm apoio, mas, em geral, privatizações, cortes de gastos em serviços sociais, livre comércio, não são medidas populares. De modo que é preciso haver estratégias alternativas para contornar a democracia e é aí que as crises entram.
CULT - Desde o começo do livro você deixa claro que a expressão "doutrina do choque" não se trata apenas de uma metáfora. De onde veio esta idéia de propor a relação entre as técnicas de tortura da CIA e a implementação da idéias econômicas de Milton Friedman?
NK - Parte veio por morar na Argentina, quando começou a invasão do Iraque. Era um momento muito particular no país, em 2002, porque se vivia uma crise econômica e, ao mesmo tempo, a abertura para uma discussão muito mais abrangente sobre o período da ditadura do que antes. A Argentina tem um movimento de direitos humanos muito forte, mas nos anos 90 esses grupos ainda eram politicamente marginais. O debate sobre o período da ditadura estava concentrado na questão dos direitos humanos, mas quando a economia entrou em colapso, a discussão foi ampliada e as pessoas começaram a fazer conexões entre o modelo econômico que fracassou de maneira tão retumbante e o período da ditadura quando esse modelo foi introduzido. E o que se ouvia constantemente era que essas políticas econômicas foram instauradas mediante o uso da violência, do choque. Quando a guerra do Iraque começou, os argentinos fizeram comparações entre o que aconteceu no país nos anos 1970 e o que estava acontecendo no Iraque. Foi isso que me fez querer entender as conexões entre os diversos tipos de choque, pois já estavam sendo feitas nas ruas da Argentina [sic]. Era uma maneira nova de interpretar a história - eu sabia da ditadura militar, mas não sabia que a agenda econômica era tão clara. No livro cito a carta aberta de Rodolfo Walsh à Junta Militar. Naquele tempo, em Buenos Aires, essa carta tomou vida própria: era lida em parques, assembléias de bairros, na frente das casas de generais, no rádio. Isso me fez querer entender essas conexões e querer viajar ao Iraque. Alguns amigos jornalistas argentinos, especialmente Claudia Acuña, descreveram como era difícil perceber as razões por trás do terror quando se está vivendo a situação. No momento em que dizia isso, Paul Bremer chegava ao Iraque e anunciava uma transformação econômica radical, dizendo que o país estava aberto para negócios. Mesmo assim, toda a atenção jornalística estava concentrada na guerra e não no programa econômico. Então senti que, depois de ter aprendido essa lição na Argentina, tinha a responsabilidade, como jornalista e escritora, de ir ao Iraque e pesquisar a verdadeira causa da violência. Foi depois dessa experiência que li o manual de interrogatório da CIA, pois eu estava no Iraque quando estourou o escândalo de Abu Ghraib.
CULT - O que significa exatamente "capitalismo do desastre"? É um conceito realmente novo ou é apenas uma nova expressão para uma velha premissa capitalista? Afinal, devastações e crises sempre criaram oportunidades de negócio, são internos ao processo de acumulação capitalista.
NK - Acho que o conceito de "destruição criativa", de Joseph Schumpeter, está muito ligado ao que descrevo. No sentido de que o capitalismo cria crises, de que executa constantemente criação e destruição. Mas estou falando de algo menos orgânico que isso. Trata-se aqui de uma estratégia política deliberada, de uma filosofia de poder; não apenas de ciclos naturais do capitalismo, em que uma nova tecnologia destrói um modelo econômico anterior e, a partir dessa destruição, um novo nível de criação surge. Trata-se de um conceito que foi profundamente compreendido e articulado por Williamson: que você precisa de uma crise para aprovar um conjunto específico de diretrizes econômicas. Acho que há algo de novo e antigo no que estou documentando. Veja o que aconteceu com após o furacão Katrina, exemplo clássico do capitalismo do desastre. Não considero o Katrina um desastre "natural" porque envolveu uma clara omissão do Estado - no sentido de que as barragens estavam deterioradas. Imediatamente depois do ocorrido, um político republicano, Richard Baker, disse "não pudemos limpar os projetos de conjuntos habitacionais, mas Deus fez isso por nós". Isso é o capitalismo do desastre! É uma idéia muito velha, que já existia na mentalidade colonial. Na América do Norte, os colonos que ocuparam a Nova Inglaterra tinham uma teoria religiosa sobre a varíola, pois a causa principal de mortalidade dos índios era a doença. Nos diários da época, falava-se da moléstia como uma dádiva de Deus. De diversas maneiras, estavam usando a mesma formulação que o político republicano. Quando a varíola acabou com diversas comunidades do Iroquois e a terra deles foi invadida pelos colonos, Deus foi invocado, e o desastre foi visto com um ato divino. Então, sim, isso não é novidade [risos]. Mas, o que há de novo aqui, e que vimos em Nova Orleans, é que não apenas o desastre foi utilizado para a privatização do sistema educacional e habitacional, mas a resposta ao próprio desastre foi vista como oportunidade de mercado. E essa é realmente a última fronteira para o neoliberalismo. Todas as partes do estado foram privatizadas: estradas, eletricidade, telefone, água. Havia sobrado apenas as funções fundamentais: os militares, a polícia, os bombeiros. Mas agora estamos vendo aquilo que incluo nesse complexo do capitalismo do desastre: negócios que se alimentam desse conjunto de crises e desastres para crescer. Os próprios desastres são a última fronteira para a privatização. Você tem bombeiros privados, a Blackwater [empresa militar privada], que apareceu em Nova Orleans pronta para substituir a policia, o Helpjet, um serviço que proporciona um plano de fuga rápido e luxuoso, com direito a limosine, no caso de um furacão. Acho que estamos vendo agora, na crise dos alimentos, no sentido de que esse desastre torna altamente lucrativo o setor corporavito do agrobusiness. Acho que precisamos entender os desafios que enfrentamos, principalmente relativos à mudança climática. Está muito claro que existe uma parcela da economia cujo desempenho é favorecido conforme a situação piora. Não são apenas as empresas de armamentos. São as companhias de petróleo, de agronegócios, de biocombustíveis, farmacêuticas, empreiteiras, companhias de segurança. Precisamos mapear essas empresas que, com seu poderoso lobby, impedem mudanças efetivas que nos tiram desse processo de crises contínuas.
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Leia a íntegra da entrevista na edição de junho da CULT, já nas bancas.
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Os grifos em negrito são nossos
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