Creio que não existe nada de mais belo, de mais profundo, de mais simpático, de mais viril e de mais perfeito do que o Cristo; e eu digo a mim mesmo, com um amor cioso, que não existe e não pode existir. Mais do que isto: se alguém me provar que o Cristo está fora da verdade e que esta não se acha n'Ele, prefiro ficar com o Cristo a ficar com a verdade. (Dostoievski)

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9 de ago. de 2008

Roland Barthes [2]


Astrologia

Parece que na França o orçamento anual da "bruxaria" é de aproximadamente 300 bilhões de francos *. Vale a pena dar uma olhada na semana astrológica de um semanário como, por exemplo, o Elle. Ao contrário do que se poderia esperar, não se depara com nenhum mundo onírico, mas sim com uma descrição estreitamente realista de um meio social preciso, o das leitoras do jornal. Ou seja, a astrologia não é, de modo algum, pelo menos nesse caso, uma abertura para o sonho, mas puro espelho e pura instituição da realidade.

As principais rubricas do destino (Sorte, No exterior, Em sua casa, O seu coração) produzem escrupulosamente o ritmo total da vida laboriosa. A unidade é a semana, na qual a "sorte" designa um dia ou dois. A "sorte" é aqui a zona reservada da interioridade, do humor; é o signo vivido do devir, a única categoria pela qual o tempo subjetivo se exprime e se liberta. No que diz respeito ao resto, os astros só condicionam um horário: No exterior, é o horário profissional, os seis dias da semana, as sete horas por dia no escritório ou na loja. Em sua casa, é a refeição da noite, o lapso do serão antes de deitar. O seu coração é o encontro à saída do trabalho ou a aventura de domingo. Mas não existe a mínima comunicação entre estes setores: nada que, de um horário a outro, possa sugerir a idéia de uma alienação total; as prisões são contíguas, revezam-se, mas não se contaminam. Os astros nunca postulam uma destruição da ordem e exercem a sua influência, moderadamente, semana após semana, respeitando o estatuto social e os horários patronais.

Assim, o "trabalho" considerado é o de empregadas, datilógrafas ou vendedoras; o microgrupo que rodeia a leitora é, quase fatalmente, o do escritório ou o da loja. As variações impostas, ou melhor, propostas pelos astros (pois esta astrologia é uma teologia prudente: não exclui o livre-arbítrio), são fracas; nunca pretendem perturbar intensamente uma vida: o peso do destino exerce-se unicamente sobre o gosto pelo trabalho, o nervosismo ou o bem-estar, a assiduidade ou o relaxamento, as pequenas deslocações, as promoções indefinidas, as relações acrimoniosas ou de cumplicidade com os colegas e, sobretudo, a fadiga, os astros prescrevendo sempre com muita insistência e bom senso que se durma mais, sempre mais.

O lar, por sua vez, é dominado por problemas de humor, de hostilidade ou de confiança do meio: trata-se freqüentemente de um lar de mulheres, onde as relações mais importantes são as de mãe e filha. A casa pequeno-burguesa está, pois, fielmente presente, com as visitas da "família", distinta da dos "parentes por afinidade", pelos quais, aliás, as estrelas não parecem ter muita consideração. Este ambiente parece quase exclusivamente familiar, fazendo-se poucas alusões aos amigos. O mundo pequeno-burguês, sendo essencialmente constituído por parentes e colegas, não comporta verdadeiras crises de relacionamento, mas apenas pequenos afrontamentos de humor e vaidade. O amor é o do Correio Sentimental: um "setor" bem à parte, o das questões sentimentais. Mas, assim como a transação comercial, o amor conhece "inícios prometedores", "desilusões" e "escolhas erradas". A infelicidade tem uma fraca amplitude: numa semana, um cortejo de admiradores menos numeroso, uma indiscrição, ciúmes sem fundamento. O céu sentimental só se descobre verdadeiramente e por completo perante a "solução tão desejada", o casamento, e, mesmo assim, é preciso que seja "adequado".

Um só traço idealiza esse pequeno mundo dos astros, no restante muito concreto: o fato de nunca se falar em dinheiro. A humanidade astrológica não se preocupa com o salário mensal: ele é o que é, nunca sendo mencionado, visto que permite a "vida". Vida que os astros descrevem mais do que predizem; raramente se arrisca o futuro, e a previsão é sempre neutralizada pelo equilíbrio dos possíveis: se houver fracassos, serão pouco importantes, se houver rostos sombrios, o seu bom humor irá alegrá-los; as relações maçantes serão úteis etc. e, se o seu estado geral deve melhorar, isto acontecerá depois de um tratamento que tiver realizado ou talvez graças também à ausência de qualquer tratamento (sic).

Os astros são morais; deixam-se comover pela virtude: a coragem, a paciência, o bom humor e o controle de si próprio são sempre convenientes perante as desilusões timidamente pressagiadas. E o paradoxo é que esse universo de puro determinismo é imediatamente domado pela liberdade do caráter: a astrologia é, antes de mais nada, uma escola da força de vontade. Porém, mesmo se as soluções são pura mistificação e se os problemas de comportamento são escamoteados, a astrologia continua sendo uma instituição do real perante a consciência das suas leitoras: não um caminho para a evasão, mas sim uma evidência realista das condições de vida da empregada, da vendedora etc.

Para que serve, pois, essa pura descrição, visto que não parece comportar nenhuma compensação onírica? Serve para exorcizar o real, nomeando-o. Nessa perspectiva, situa-se entre todos os empreendimentos de semi-alienação (ou de semilibertação) que se encarregam de objetivar o real, sem, no entanto, chegar a desmistificá-lo. Pelo menos uma outra dessas tentativas nominalistas é bem conhecida: a Literatura, que nas suas formas degradadas nunca pode ir além da nomeação do vivido; astrologia e Literatura compartilham a mesma tarefa de instituição "retardada" do real: a astrologia é a Literatura do mundo pequeno-burguês.

***

*Texto escrito em 1956.
Texto de Roland Barthes, publicado em Mitologias.

***

Mais:


Formado em Letras Clássicas em 1939 e Gramática e Filosofia em 1943 na Universidade de Paris, fez parte da escola estruturalista, influenciado pelo lingüista Ferdinand de Saussure. Crítico dos conceitos teóricos complexos que circularam dentro dos centros educativos franceses nos anos 50. Entre 1952 e 1959 trabalhou no Centre national de la recherche scientifique - CNRS.

Barthes usou a análise semiótica em revistas e propagandas, destacando seu conteúdo político. Dividia o processo de significação em dois momentos: denotativo e conotativo. Resumida e essencialmente, o primeiro tratava da percepção simples, superficial; e o segundo continha as mitologias, como chamava os sistemas de códigos que nos são transmitidos e são adotados como padrões. Segundo ele, esses conjuntos ideológicos eram às vezes absorvidos despercebidamente, o que possibilitava e tornava viável o uso de veículos de comunicação para a persuasão.

Principais Obras
O grau Zero da Escrita (
1953)
Mitologias (
1957)
Elementos da Semiologia (
1965)
O sistema da moda (
1967)
S/Z (
1970)
Roland Barthes por Roland Barthes (
1975)
Fragmentos de um Discurso Amoroso (
1977)
A câmara clara (
1980)

***

FONTE: Wikipédia

2 comentários:

Anônimo disse...

Maya, olá.
Passei aqui pra rever seu blog (e ouvir as ótimas músicas que vc põe...).
Barthes foi referência importante para mim durante a graduação. Mitologias é um de seus livros que mais admiro.
Você conhece as reedições e os inéditos que a Martins Fontes tem publicado desde 2003? Uma coleção coordenada por Leyla Perrone-Moisés. Dessa coleção comprei O Neutro, anotações de aulas que Barthes ministrou no Collège de France.
Um abraço de Raquel

Maya Felix disse...

Prezada Raquel,

Barthes também é uma referência para mim, foi um dos primeiros autores que li na Graduação. Infelizmente, não conheço essa coleção que vc cita, e aliás devo dizer que é difícil encontrar a obra completa de Roland Barthes no Brasil, ainda que haja traduções. Essas anotações de que vc fala eu conheço como "Aula", não sei que tem a ver com "O Neutro".

Um abraço, obrigada por sua postagem,

Maya

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