A febre de possuir
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Nossa tradição escolar, baseada em concepções de linguagem arcaicas, de antes de Cristo, sempre tratou de fazer uma separação rígida entre língua falada e escrita: só a língua escrita ou, mais restritamente, só a língua escrita literária merecia ser estudada, analisada e codificada para, em seguida, se tornar objeto exclusivo de ensino. Com isso, a língua falada não só era deixada de lado como também considerada caótica, desregrada, imperfeita e ilógica. Uma das principais revoluções da ciência lingüística moderna foi precisamente corrigir essa distorção milenar e colocar a língua falada no centro da investigação sobre a linguagem.
As conseqüências negativas da supervalorização da escrita e da depreciação da fala são muitas e profundas. Uma delas é a falácia, que muita gente assume, de que todo e qualquer texto escrito tem que ser rebuscado, recheado de palavras e construções pouco usuais, de modo a ficar o mais distante possível da "banalidade" da língua falada. Assim, entre duas opções possíveis, só deve figurar na escrita aquela que for a menos empregada na fala. Resultado: usos que contrariam ao mesmo tempo a fluência natural da fala e as regras tradicionalmente prescritas pelas gramáticas normativas para a língua escrita, devido ao conhecimento superficial dessas formas menos habituais e a seu uso exagerado.
Um bom exemplo é o pronome o qual. Raríssimo na fala espontânea, muita gente o emprega a torto e a direito na escrita porque lhe ensinaram a bobagem de que é preciso evitar a repetição do que. Aparecem, então, coisas como "um livro o qual nos ensina muito" ou um país o qual visitei há pouco". Também freqüente é o uso de o qual no masculino singular e sem a preposição que deveria acompanhá-lo: "uma cidade o qual temos filial", como me escreveram certa vez. A presença de o qual várias vezes na mesma página é indício seguro de um texto com problemas.
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Hoje, pelas mesmas razões, muita gente está acometida da febre de possuir. Em lugar do simples, prático e eficiente verbo ter, de uso essencial, aparece a todo momento o verbo possuir, como se fosse sinônimo absoluto de ter e coubesse em todos os contextos. Assim, preenchendo um formulário encontrei: "Você possui filhos?". Me deu vontade de responder: "só os dos outros"! Num livro de aventuras juvenis:
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"Era um malfeitor que possuía muitos homens."
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De repente virou um romance gay. Antes, na caixa de mensagens do celular, a gravação dizia: "Você tem uma nova mensagem." Agora, a gravação diz: "Você possui uma nova mensagem." Provas pedem ao candidato que assinale a opção que "possui a resposta certa". Nos aeroportos, se dá prioridade às pessoas que "possuam dificuldades de locomoção". Na base de curriculos do CNPq: "Fulano possui mestrado e doutorado".
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Num documentário na televisão: "tal ave possui hábitos migratórios", "cada ninho possui três ovos", "só o macho possui canto", entre outros quinze usos de possuir num programa de trinta minutos... É que além de substituir indevidamente o verbo ter, o possuir também serve de curinga. Tal repetição revela a pouca destreza do escrevente no manejo da língua escrita mais monitorada, culpa de um ensino que se prende a gramatiquices inúteis e não favorece o letramento.
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Na paranóia de separar o certo do errado, a escrita da fala, nosso ensino de língua acaba gerando, ele sim, representações da língua totalmente errôneas que se manifestam em textos untuosos e mal articulados. Resultado: reprime-se a oralidade, que é de uma riqueza inesgotável, e ao mesmo tempo não se promove uma escrita fluente e agradável de ler.
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Texto do prof. Marcos Bagno, lingüista e escritor, publicado na revista Caros Amigos de julho/2008. Os grifos em negrito são meus! : )
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Site do prof. Marcos Bagno: http://www.marcosbagno.com.br
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Site da revista caros Amigos: http://www.carosamigos.com.br/
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