Creio que não existe nada de mais belo, de mais profundo, de mais simpático, de mais viril e de mais perfeito do que o Cristo; e eu digo a mim mesmo, com um amor cioso, que não existe e não pode existir. Mais do que isto: se alguém me provar que o Cristo está fora da verdade e que esta não se acha n'Ele, prefiro ficar com o Cristo a ficar com a verdade. (Dostoievski)

FAÇA COMO EU: VISITE O BLOG DELES, E SIGA-OS TAMBÉM! :)

1 de ago. de 2008

Marcos Bagno em Caros Amigos


A febre de possuir
.
Nossa tradição escolar, baseada em concepções de linguagem arcaicas, de antes de Cristo, sempre tratou de fazer uma separação rígida entre língua falada e escrita: só a língua escrita ou, mais restritamente, só a língua escrita literária merecia ser estudada, analisada e codificada para, em seguida, se tornar objeto exclusivo de ensino. Com isso, a língua falada não só era deixada de lado como também considerada caótica, desregrada, imperfeita e ilógica. Uma das principais revoluções da ciência lingüística moderna foi precisamente corrigir essa distorção milenar e colocar a língua falada no centro da investigação sobre a linguagem.

As conseqüências negativas da supervalorização da escrita e da depreciação da fala são muitas e profundas. Uma delas é a falácia, que muita gente assume, de que todo e qualquer texto escrito tem que ser rebuscado, recheado de palavras e construções pouco usuais, de modo a ficar o mais distante possível da "banalidade" da língua falada. Assim, entre duas opções possíveis, só deve figurar na escrita aquela que for a menos empregada na fala. Resultado: usos que contrariam ao mesmo tempo a fluência natural da fala e as regras tradicionalmente prescritas pelas gramáticas normativas para a língua escrita, devido ao conhecimento superficial dessas formas menos habituais e a seu uso exagerado.

Um bom exemplo é o pronome o qual. Raríssimo na fala espontânea, muita gente o emprega a torto e a direito na escrita porque lhe ensinaram a bobagem de que é preciso evitar a repetição do que. Aparecem, então, coisas como "um livro o qual nos ensina muito" ou um país o qual visitei há pouco". Também freqüente é o uso de o qual no masculino singular e sem a preposição que deveria acompanhá-lo: "uma cidade o qual temos filial", como me escreveram certa vez. A presença de o qual várias vezes na mesma página é indício seguro de um texto com problemas.
.
Hoje, pelas mesmas razões, muita gente está acometida da febre de possuir. Em lugar do simples, prático e eficiente verbo ter, de uso essencial, aparece a todo momento o verbo possuir, como se fosse sinônimo absoluto de ter e coubesse em todos os contextos. Assim, preenchendo um formulário encontrei: "Você possui filhos?". Me deu vontade de responder: "só os dos outros"! Num livro de aventuras juvenis:
.
"Era um malfeitor que possuía muitos homens."
.
De repente virou um romance gay. Antes, na caixa de mensagens do celular, a gravação dizia: "Você tem uma nova mensagem." Agora, a gravação diz: "Você possui uma nova mensagem." Provas pedem ao candidato que assinale a opção que "possui a resposta certa". Nos aeroportos, se dá prioridade às pessoas que "possuam dificuldades de locomoção". Na base de curriculos do CNPq: "Fulano possui mestrado e doutorado".
.
Num documentário na televisão: "tal ave possui hábitos migratórios", "cada ninho possui três ovos", "só o macho possui canto", entre outros quinze usos de possuir num programa de trinta minutos... É que além de substituir indevidamente o verbo ter, o possuir também serve de curinga. Tal repetição revela a pouca destreza do escrevente no manejo da língua escrita mais monitorada, culpa de um ensino que se prende a gramatiquices inúteis e não favorece o letramento.
.
Na paranóia de separar o certo do errado, a escrita da fala, nosso ensino de língua acaba gerando, ele sim, representações da língua totalmente errôneas que se manifestam em textos untuosos e mal articulados. Resultado: reprime-se a oralidade, que é de uma riqueza inesgotável, e ao mesmo tempo não se promove uma escrita fluente e agradável de ler.
.
***
.
Texto do prof. Marcos Bagno, lingüista e escritor, publicado na revista Caros Amigos de julho/2008. Os grifos em negrito são meus! : )
.
Site do prof. Marcos Bagno: http://www.marcosbagno.com.br
.
Site da revista caros Amigos: http://www.carosamigos.com.br/

Nenhum comentário:

Marcadores

Comportamento (719) Mídia (678) Web (660) Imagem (642) Brasil (610) Política (501) Reflexão (465) Fotografia (414) Definições (366) Ninguém Merece (362) Polêmica (346) Humor (343) link (324) Literatura (289) Cristianismo (283) Maya (283) Sublime (281) Internacional (276) Blog (253) Religião (214) Estupidez (213) Português (213) Sociedade (197) Arte (196) La vérité est ailleurs (191) Mundo Gospel (181) Pseudodemocracia (177) Língua (176) Imbecilidade (175) Artigo (172) Cotidiano (165) Educação (159) Universidade (157) Opinião (154) Poesia (146) Vídeo (144) Crime (136) Maranhão (124) Livro (123) Vida (121) Ideologia (117) Serviço (117) Ex-piritual (114) Cultura (108) Confessionário (104) Capitalismo (103) (in)Utilidade pública (101) Frases (100) Música (96) História (93) Crianças (88) Amor (84) Lingüística (82) Nojento (82) Justiça (80) Mulher (77) Blábláblá (73) Contentamento (73) Ciência (72) Memória (71) Francês (68) Terça parte (68) Izquerda (66) Eventos (63) Inglês (61) Reportagem (55) Prosa (54) Calendário (51) Geléia Geral (51) Idéias (51) Letras (51) Palavra (50) Leitura (49) Lugares (46) Orkut (46) BsB (44) Pessoas (43) Filosofia (42) Amizade (37) Aula (37) Homens (36) Ecologia (35) Espanhol (35) Cinema (33) Quarta internacional (32) Mudernidade (31) Gospel (30) Semiótica e Semiologia (30) Uema (30) Censura (29) Dies Dominicus (27) Miséria (27) Metalinguagem (26) TV (26) Quadrinhos (25) Sexo (25) Silêncio (24) Tradução (24) Cesta Santa (23) Gente (22) Saúde (22) Viagens (22) Nossa Linda Juventude (21) Saudade (21) Psicologia (18) Superação (18) Palestra (17) Crônica (16) Gracinha (15) Bizarro (14) Casamento (14) Psicanálise (13) Santa Casa de Misericórdia Franciscana (13) Carta (12) Italiano (12) Micos (12) Socialismo (11) Comunismo (10) Maternidade (10) Lêndias da Internet (9) Mimesis (9) Receita (9) Q.I. (8) Retrô (8) Teatro (7) Dããã... (6) Flamengo (6) Internacional Memória (6) Alemão (5) Latim (5) Líbano (5) Tecnologia (5) Caninos (4) Chocolate (4) Eqüinos (3) Reaça (3) Solidão (3) TPM (2) Pregui (1)

Arquivo