Creio que não existe nada de mais belo, de mais profundo, de mais simpático, de mais viril e de mais perfeito do que o Cristo; e eu digo a mim mesmo, com um amor cioso, que não existe e não pode existir. Mais do que isto: se alguém me provar que o Cristo está fora da verdade e que esta não se acha n'Ele, prefiro ficar com o Cristo a ficar com a verdade. (Dostoievski)

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26 de jan. de 2008

o problema com a virtude

“Como personalidade de vendas,
o que eu gostaria de vender para vocês?”

Não há na verdade nenhum problema com a virtude.

O problema começa quando começamos a falar bem dela.

No conto O descortês mestre de cerimônias Kotsuké no Suké, de Jorge Luis Borges, algo notável acontece: um homem virtuoso finge ser um cafajeste a fim de realizar um feito virtuoso. Trata-se de acontecimento notável porque, naturalmente, o oposto é que é a norma: um homem perverso finge-se de virtuoso a fim de empreender alguma perversidade.

O primeiro problema em falar-se bem da virtude, portanto, é que não há nenhuma maneira de se determinar se estamos ouvindo alguma sinceridade – nem mesmo quando somos nós que estamos falando.

Recebi, como todo mundo, o discurso atribuído a José Galló, presidente das Lojas Renner, quando recebeu em novembro do ano passado o título de Personalidade de Vendas do Ano.
Não conheço o sujeito e não tenho nada contra ele. Tudo que sei sobre José Galló está no que li no seu discurso. Tudo que sei é que ele fala muito bem da virtude – e que portanto não tenho como confiar nele. No discurso.

Em seu pronunciamento Galló não fala muito em “virtudes”. Ele prefere a palavra mais ao gosto do nosso tempo, valores – termo que tem a vantagem retórica de ser mais imponderável e moderno e relativo do que o “virtudes”. Pode não estar na moda defender a virtude, mas “valores” todo mundo tem os seus, e somos imodestos o bastante para pensar que quando alguém defende os bons “valores” está defendendo os nossos.

Para não deixar a coisa no ar, o discursante estabelece logo que está falando (e, como se descobre, defendendo) o que ele chama de valores comuns: ética, decência, veracidade, honestidade, justiça. Esses são valores que “dão sustentação à verdadeira democracia”.

“Liberdade, justiça, honestidade, ética, respeito, transparência, dignidade, bem estar social. São valores. Injustiça, desonestidade, deslealdade, oportunismo, corrupção, esperteza. São contra-valores.”

QUANDO COMEÇAMOS A APREGOAR A VIRTUDE TORNAMO-NOS, NAQUELE EXATO MOMENTO, INDISTINGÜÍVEIS DAQUELES QUE ESTAMOS QUERENDO CONDENAR.

Parte do problema do discurso de Galló está em que, num certo nível, não há como discordar do que ele está dizendo. Quem ousaria falar mal da decência? E em público?

De novo, aqui reside o paradoxo de se falar bem da virtude. Nenhuma conduta é mais típica de alguém que cedeu ao Lado Negro dos “contra-valores” do que falar bem das virtudes que não pratica. O melhor modo de encobrir a infâmia é sob o manto da exaltação da virtude. Lobo em pele de ovelha, aquela história. O contra-valor esperteza ensina isso na sua primeira lição. Eu sei.
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Todos os exemplos de “contra-valores” que Galló examina estão ligados à corrupção na política. Trata-se de fato especialmente revelador, tendo em vista que são os políticos os especialistas em fazer discursos virtuosos, que exaltam os valores mais unânimes, populares e caros – e fazem-no porque sabem que desde que ouçamos o que queremos ouvir não nos importaremos muito em ver cada palavra desconfirmada pela prática de cada um.

Basta fazer uma defesa ardente dos “valores” mais universalmente aceitos para merecer nosso mais sincero aplauso ao final de cada discurso. A lista mais completa e a voz mais embargada ganha.

É só do que qualquer um precisa para ganhar a nossa aprovação: um bom discurso.
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A dificuldade com a virtude está em que ela é muito fácil de simular, e os peritos nessa simulação são justamente os perversos. Eles falam bem do que é correto e fazem bem o que é errado. Parte essencial do paradoxo está, então, em que quando começamos a apregoar a virtude tornarmo-nos, naquele exato momento, indistingüiveis daqueles que estamos querendo condenar.
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Mais sensato é fazer como Diogo Mainardi: contentar-se em falar mal da medicocridade. Entre outras coisas, não ficaremos com falta de assunto e poderemos continuar falando de nós mesmos.

POR QUE É IMPRUDENTE FALAR BEM DA VIRTUDE

(1) não temos como saber se estamos ouvindo ou falando alguma sinceridade;
(2) não produz nenhuma verdadeira mudança de atitude, com exceção de
(3) gerar nos que estão ouvindo a impressão de que discursante e ouvinte estão de fato numa categoria à parte, que merece por sua corajosa defesa da virtude status acima do bando de corruptos que os rodeia;
(4) nossa postura torna-se, paradoxalmente, indistingüivel da dos infames mentirosos que estamos querendo denunciar.

É limitação inerente à natureza das palavras: palavras não são jamais virtuosas por si mesmas – nem mesmo quando falam a verdade. Os elogios à virtude são muito mais fáceis de copiar, divulgar e recomendar do que a virtude em si.

As palavras podem ser simuladas, mas não a verdadeira virtude – e é por isso que gente verdadeiramente virtuosa tem pouco tempo e disposição para ficar falando bem da virtude. E eis o outro lado do paradoxo.

Não sou um sujeito virtuoso, mas pelo menos não cometo a impudência de recomendar a virtude a quem quer que seja. A virtude é para quem tem estômago forte. Entre outras coisas, ela requer que não se tenha o rabo preso com ninguém.

Sei o bastante para saber que as palavras virtuosas não incitam à virtude; apenas os atos virtuosos tem o poder (como lembrava Vieira) de nos seduzir a imitá-los.

A VIRTUDE É PARA QUEM TEM ESTÔMAGO FORTE.

Quem seria virtuoso o bastante para ter cacife de recomendar a virtude? Gandhi? Talvez. Madre Teresa de Calcutá? Possivelmente. Jesus? Por certo. Tudo que esses fizeram para divulgar a virtude foi, temerariamente, praticá-la. Nenhum deixou muitos seguidores.

Se eu fosse virtuoso, diria para Galló e todos que o endossaram pararem de falar bem da virtude e começarem a colocá-la em prática. Mas – ai de mim – nem isso posso fazer: posso apenas analisar as contradições dele, que são as minhas.

Talvez um homem virtuoso que gaste muito tempo exaltando a perversidade possa acabar de fato sendo contaminado por ela, e torne-se pela mera repetição um homem perverso. O oposto, por outro lado, não corre o risco de acontecer: quem gasta tempo falando bem da virtude acaba acreditando que é de fato virtuoso – e nada há de menos virtuoso do que isso.

Se você quer ser virtuoso, vá e encontre alguém virtuoso para imitar. Não limite-se a imitar as minhas palavras, por mais virtuosas que sejam – e às vezes, paradoxalmente, são.
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***

Texto de Paulo Brabo publicado no site A Bacia das Almas em 27/01/2006.

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