Creio que não existe nada de mais belo, de mais profundo, de mais simpático, de mais viril e de mais perfeito do que o Cristo; e eu digo a mim mesmo, com um amor cioso, que não existe e não pode existir. Mais do que isto: se alguém me provar que o Cristo está fora da verdade e que esta não se acha n'Ele, prefiro ficar com o Cristo a ficar com a verdade. (Dostoievski)

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10 de jan. de 2008

linguagem, escrita e poder


Linguagem, poder e discriminação
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Introdução
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A linguagem não é usada somente para veicular informações, isto é, a função referencial denotativa da linguagem não é senão uma entre outras; entre estas ocupa uma posição central a função de comunicar ao ouvinte a posição que o falante ocupa de fato ou acha que ocupa na sociedade em que vive. As pessoas falam para serem "ouvidas", às vezes para serem respeitadas e também para exercer uma inluência no ambiente em que realizam os atos lingüísticos. O poder da palavra é o poder de mobilizar a autoridade acumulada pelo falante e concentrá-la num ato lingüístico (Bourdieu, 1977). Os casos mais evidentes em relação a tal afirmação são também os mais extremos: discurso político, sermão na igreja, aula, etc. As produções lingüísticas deste tipo, e também de outros tipos, adquirem valor se realizadas no contexto social e cultural apropriado. As regras que governam a produção apropriada dos atos de linguagem levam em conta as relações sociais entre o falante e o ouvinte. Todo ser humano tem que agir verbalmente de acordo com tais regras, isto é, tem que "saber": a) quando pode falar e quando não pode, b) que tipo de conteúdos referenciais lhe são consentidos, c) que tipo de variedade lingüística é oportuno que seja usada. Tudo isto em relação ao contexto lingüístico e extralingüístico em que o ato verbal é produzido. A presença de tais regras é relevante não só para o falante, mas também para o ouvinte, que, com base em tais regras, pode ter alguma expectativa em relação à produção lingüística do falante. Esta capacidade de previsão é devida ao fato de que nem todos os integrantes de uma sociedade têm acesso a todas as variedades e muito menos a todos os conteúdos referenciais. Somente uma parte dos integrantes das sociedades complexas, por exemplo, tem acesso a uma variedade "culta" ou "padrão", considerada geralmente "a língua", e associada tipicamente a conteúdos de prestígio. A língua padrão é um sistema comunicativo ao alcance de uma parte reduzida dos integrantes de uma comunidade; é um sistema associado a um patrimônio cultural apresentado como um "corpus" definido de valores, fixados na tradição escrita.
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Uma variedade lingüística "vale" o que "valem" na sociedade os seus falantes, isto é, vale como reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas relações econômicas e sociais. Esta afirmação é válida, evidentemente, em termos "internos", quando confrontamos variedades de uma mesma língua, e em termos "externos" pelo prestígio das línguas no plano internacional. Houve época que o francês ocupava a posição mais alta na escala de valores internacionais das línguas, depois foi a vez da ascenção do inglês. O passo fundamental na afirmação de uma variedade sobre as outras é sua associação à escrita e, conseqüentemente, sua transformação em uma variedade usada na transmissão de informações de ordem política e "cultural". A diferenciação política é um elemento fundamental para favorecer a diferenciação lingüística. As línguas européias começaram a ser associadas à escrita dentro de restritos ambientes de poder: nas cortes de príncipes, bispos, reis e imperadores. O uso jurídico das variedades lingüísticas foi também determinante para fixar uma forma escrita. Assim foi que o falar de Île-de-France passou a ser a língua francesa, a variedade usada pela nobreza da Saxônia passou a ser a língua alemã, etc.
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O caso da história do galego-português é significativo neste sentido. Os caracteres mais específicos do português foram acentuados talvez já no século XII. Esta tendência a reconhecer os caracteres mais específicos das línguas semelhantes pode ser acentuada, como foi no caso do português e do galego, quando a região de uso de uma das duas variedades lingüísticas constitui um centro poderoso, como foi a Galícia, desde o século XI. A língua literária chamada galego-português que se difundiu na Península Ibérica a partir do século XII era a expressão, no plano lingüístico, do prestígio de Santiago de Compostela.
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A associação entre uma determinada variedade lingüística e a escrita é o resultado histórico indireto de oposições entre grupos sociais que eram e são "usuários" (não necessariamente falantes nativos) das diferentes variedades. Com a emergência política e econômica de grupos de uma determinada região, a variedade por eles usada chega mais ou menos rapidamente a ser associada de modo estável com a escrita. Associar a uma variedade lingüística a comunicação escrita implica iniciar um processo de reflexão sobre tal variedade e um processo de "elaboração" da mesma. Escrever nunca foi e nunca vai ser a mesma coisa que falar: é uma operação que influi necessariamente nas formas escolhidas e nos conteúdos referenciais. Nas nações da europa ocidental a fixação de uma variedade na escrita precedeu de alguns séculos a associação de tal variedade com a tradição gramatical greco-latina. Tal associação foi um passo fundamental no processo de "legitimação" de uma norma. O conceito de "legitimação" é fundamental pra se entender a instituição das normas lingüísticas. A legitimação é o "processo de dar 'idoneidade' ou 'dignidade' a uma ordem de natureza política, para que seja reconhecida e aceita" (Habermas, 1976). A partir de uma determinada tradição cultural, foi extraída e definida uma variedade lingüística usada, como já dissemos, em grupos de poder, e tal variedade foi reproposta como algo de central na identidade nacional, enquanto portadora de uma tradição e de uma cultura.
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Assim como o estado e o poder são apresentados como entidades superiores e "neutras", também o código aceito "oficialmente" pelo poder é apontado como neutro e superior, e todos os cidadãos têm que produzi-lo e entendê-lo nas relações com o poder. M. Bakhtin-V. Volóshinov em sua obra de 1929 apontava quatro princípios orientadores de uma típica visão "oficial" e conservadora da linguagem dentro da tendência que ele chamava de "objetivismo abstrato":
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1. A língua é um sistema estável, imutável, de formas lingüísticas submetidas a uma norma fornecida tal qual à consciência individual e peremptória para esta.
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2. As leis da língua são esencialmente leis lingüísticas específicas, que estabelecem ligações entre os signos lingüísticos no interior de um sistema fechado. Estas leis são objetivas relativamente a toda consciência subjetiva.
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3. As ligações lingüísticas específicas nada têm a ver com valores ideológicos (artísticos, cognitivos ou outros). Não se encontra, na base dos fatos lingüísticos, nenhum motor ideológico. Entre a palavra e seu sentido não existe vínculo natural e compreensível para a consciência, nem vínculo artístico. [NOTA: Isso rechaça basicamente o fundamento saussureano, tomado por axioma na Lingüística, de que na composição do signo lingüístico o significado é ligado ao significante de forma arbitrária -- o que retoma Aristóteles -- daí o "caráter arbitrário do signo".]
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4. Os atos individuais de fala constituem, do ponto de vista da língua, simples refrações ou variações fortuitas ou mesmo deformações das formas normativas. Mas são justamente estes atos individuais de fala que explicam a mudança histórica das formas da língua; enquanto tal, a mudança é, do ponto de vista do sistema, irracional e mesmo desprovida de sentido. Entre o sistema da língua e sua história não existe nem vínculo nem afinidade de motivos. Eles são estranhos entre si. (1979: 68)
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Os cidadãos, apesar de declarados iguais perante a lei, são, na realidade, discriminados já na base do mesmo código em que a lei é redigida. A maioria dos cidadãos não tem acesso ao código, ou, às vezes, tem uma possibilidade reduzida de acesso, constituída pela escola e pela "norma pedagógica" ali ensinada. Apesar de fazer parte da experiência de cada um, o fato de as pessoas serem discriminadas pela maneira como falam, fenômeno que se pode verificar no mundo todo, no caso do Brasil não é difícil encontrar afirmações de que aqui não existem diferenças dialetais. Relacionado com este fato está o da distinção que se verifica no interior das relações de poder entre a norma reconhecida e a capacidade efetiva de produção lingüística considerada pelo falante a mais próxima da norma. Parece que alguns níveis sociais, especialmente dentro da chamada pequena burguesia, têm tendência à hipercorreção no esforço de alcançar a norma reconhecida. Talvez não seja por acaso que, em geral, o fator da pronúncia é considerado sempre como uma marca de proveniência regional, e às vezes social, sendo esta a área da produção lingüística mais dificilmente "apagada" pela instrução.
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A separação entre variedade "culta" ou "padrão" e as outras é tão profunda devido a vários motivos; a variedade culta é associada à escrita, como já dissemos, e é associada à tradição gramatical; é inventariada nos dicionários e é a portadora legítima de uma tradição cultural e de uma identidade nacional. É este o resultado histórico de um processo complexo, a convergência de uma elaboração histórica que vem de longe.
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GNERRE, Maurizio. Linguagem, Escrita e Poder. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p.3-7.
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NOTA: Vejo em todo lugar, internet inclusa, a proliferação dos "certos" e dos "errados". A discriminação ocorre por meio de brincadeiras jocosas com manifestações da escrita e da fala que fogem à norma dita "culta". Além de discriminatório, o conteúdo imbecil de piadinhas desse gênero é humilhante para os que não fazem parte dos "abençoados" detentores da norma "(o)culta" (Bagno).. Não faz muito tempo um blogueiro paulista publicou títulos de filmes em versão "nordestina", uma brincadeira "espirituosa", "humorística" e "pueril". A mim, em particular, isso me ofendeu. Freqüentemente, o blog deste jornalista e marqueteiro é recheado de piadinhas discriminatórias sobre o falar "errado" e o escrever "errado", fenômenos que evidenciam, isso sim, diferenças regionais e sociais a respeito de um padrão imposto. O desconhecimento que a maioria tem a respeito dos fatos da língua -- não obstante acreditarem pretensiosamente saber "bem" a língua (no caso, uma de suas variantes, a de prestígio) e o modo como estupidamente demonstram suas "competências" é motivo de reflexão acurada sobre as estruturas de poder e a dominação ideológica oriunda dessas estruturas. E é prova inconteste do que expõe aqui M. Gnerre. Não só ele. Possenti, Bagno, Scherre, Bortoni-Ricardo e tantos outros.

3 comentários:

Luciene disse...

Amiga Maya
Muito obrigada por disponibilizar aqui este capítulo.
Peço licença para divulgá-lo aos meus colegas da pós-graduação em Filologia da PUC-Minas, que andam doidos atrás desse livro :)
Abraços
Luciene (Lady Lu)

Maya Felix disse...

Prezada Lu,

Fique à vontade, é uma honra e um prazer que você divulgue meu Blog entre seus colegas.

Um abraço,

Maya

:)

Maya Felix disse...

Prezada Lu,

Fique à vontade, é uma honra e um prazer que você divulgue meu Blog entre seus colegas.

Um abraço,

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