Creio que não existe nada de mais belo, de mais profundo, de mais simpático, de mais viril e de mais perfeito do que o Cristo; e eu digo a mim mesmo, com um amor cioso, que não existe e não pode existir. Mais do que isto: se alguém me provar que o Cristo está fora da verdade e que esta não se acha n'Ele, prefiro ficar com o Cristo a ficar com a verdade. (Dostoievski)

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10 de jan. de 2008

linguagem, escrita e poder

1. Uma perspectiva histórica
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Associar a uma variedade lingüística o poder da escrita foi nos últimos séculos da Idade Média uma operação que respondeu a exigências políticas e culturais. Eram grandes as diferenças entre as variedades lingüísticas correntes e o latim, modelo de língua e de poder, na europa da Idade Média. As variedades lingüísticas associadas com a escrita passaram por um claro processo de "adequação" lexical e sintática, no qual o modelo era sempre o latim. Nas obras do Rei Alfonso X, que "traduzia" no século XIII do latim para o castelhano, encontramos constantemente termos emprestados do latim e introduzidos na variedade usada com uma explicação anexa: tirano, que quiere dezir rey cruel. Colocar uma variedade oral nos moldes da língua escrita (tendo em vista a complexidade do latim) foi operação complexa, principalmente na sintaxe. Na área das conjunções e da subordinação, por exemplo, até o estabelecimento de expressões do tipo "apesar de", "a fim de ", etc., o processo foi demorado. Nos textos mais antigos as ambigüidades que muitas vezes encontramos são devidas exatamente ao fato de que umas construções usadas na língua escrita estavam ainda em fase de elaboração e definição. As línguas românicas levaram tempo para chegar a ser variedades escritas de complexidade comparável à do modelo que visavam, o latim.
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A segunda etapa no processo de fixação de uma norma foi constituída pela associação da variedade já estabelecida como língua escrita com a tradição gramatical greco-latina. A tradição gramatical até o começo da idade moderna era associada somente com as duas línguas clássicas.
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O pensamento lingüístico grego apontou o caminho da elaboração ideológica de legitimação de uma variedade lingüística de prestígio. Desde o "legislador" platônico que impõe e escolhe os nomes apropriados dos objetos, até chegar à tradição gramatical divulgada, estruturada talvez na época alexandrina, a elaboração da ideologia e da reflexão relativas à linguagem foi constante. Na nossa perspectiva atual, nos primórdios desta tradição da especulação lingüística se coloca Platão e a visão quase que mítica de um originário escolhedor de nomes que atribuía os nomes apropriados aos objetos. Tal visão estava ainda longe do processo de elaboração nos moldes conceituais dentro dos quais foi colocada a língua grega na idade alexandrina, e mais tarde a língua latina. Era inspirada porém pela atitude de total confiança no valor da língua ática, que merecia mitos de origem e especulação lógico-filosófica.
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Somente com o começo da expansão colonial ibérica, na segunda metade do século XV, e com a estruturação definitiva dos poderes centrais dos estados europeus, os moldes da gramática greco-latina (segundo a tradição de sistematização de Dionísio da Trácia) foram utilizados para valorizar as variedades lingüísticas escritas, já associadas com os poderes centrais e/ou com as regiões economicamente mais fortes. A afirmação de uma variedade lingüística era, no caso da Espanha e de Portugal do fim do século XVI, uma dupla afirmação de poder: em termos internos, em relação às outras variedades lingüísticas usadas na época que eram quase que automaticamente reduzidas a "dialetos" e, em termos externos, em relação às línguas dos povos que ficavam na área da influência colonial. Na introdução da primeira gramática de uma língua diferente das duas línguas clássicas, a da língua castelhana, de Antonio de Nebrija (1492), encontramos as justificativas da existência da mesma gramática. Tais justificativas são colocadas em termos de utilidade da sistematização gramatical para a difusão da língua entre os povos "bárbaros". No contexto da corrida para as conquistas coloniais e da concorrência entre Espanha e Portugal é facilmente explicável o fato de que começasse a ser elaborada para a língua portuguesa uma construção ideológica para elevá-la e para ordená-la nos moldes gramaticais. Fernão de Oliveira, na introdução da sua gramática de 1536, mencionava a expansão da língua portuguesa entre os povos das terras descobertas e conquistadas. Foi João de Barros, porém, que realmente considerou o papel da língua portuguesa na expansão colonial. O que é relevante aqui é evidenciar que nem Nebrija, nem Fernão de Oliveira, nem João de Barros perceberam a operação da qual eles estavam participando em termos de uso interno da variedade "gramaticalizada". A língua era um instrumento cujo poder nas relações externas era reconhecido; os autores, porém, não mencionavam o instrumento de poder interno, apesar de termos alguns indícios também nesta direção. Assim, Nebrija escrevia na introdução da sua gramática: "a língua sempre acompanhou a dominação e a seguiu, de tal modo que juntas cresceram, juntas floresceram e, afinal, sua queda foi comum." João de Barros, quase cinqüenta anos depois, apresentava uma visão mais articulada: a língua é para ele (no Diálogo em Louvor da nossa Linguagem) um instrumento para a difusão da "doutrina" e dos "costumes", mas não é somente instrumento de difusão, pois "as armas e padrõesportugueses [...] materiais são e pode-os o tempo gastar, pero não gastará a doutrina, costumes e a linguagem que os Portugueses nestas terras deixaram". Quer dizer, a língua será o instrumento para perpetuar a presença portuguesa, também quando a dominação acabe.
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A legitimação é um processo que tem como componente essencial a criação de mitos de origem. Assim, quando a gramática das línguas românicas foi instituída como um dos instrumentos de legitimação do poder de uma variedade lingüística sobre as outras, desenvolveu-se toda uma perspectiva ideológica visando a justificá-la. Desde a metade do século XVI, começou uma corrida dos letrados e dos humanistas para conseguir demonstrar genealogias míticas para as línguas das casas reinantes às quais serviam. Johan Van Gorp Becan, de Antuérpia, propunha em 1569 que todas as línguas fossem derivadas das línguas germânicas e Guillelm Posters e Stefano afirmavam que a língua dos antigos gauleses era a originária, para demonstrar a propriedade do francês. O valor do instrumento da linguagem era claramente apreciado no século XVI e a construção de aparato mítico-ideológico em torno das línguas de "cultura" foi um emprenho sério dos letrados e humanistas.
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Leite de Vasconcelos (1931, p. 865), referindo-se à história da tradição gramatical e filosófica portuguesa entre o século XVI e a idade pombalina, escreveu que "este período da nossa filologia pode caracterizar-se pelo seguinte: preocupação, nos gramáticos, da semelhança da gramática latina com a portuguesa... e sentimento patriótico da superioridade da língua portuguesa em face das outras, principalmente da castelhana, sua concorrente temível".
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A língua dos gramáticos é um produto elaborado que tem a função de ser uma norma imposta sobre a diversidade. Duarte Nunes de Leão, na Origem da Língua Portuguesa (1606) escrevia: "E por muita semelhança que a nossa língua tem com ella (a latina) e que he a maior que nenhua língua tem com outra, & tal que em muitas palavras & periodos podemos fallar, que sejão juntamente latinos & portugueses". Falando de tal semelhança, Nunes de Leão se refere, na realidade, ao produto lingüístico do trabalho literário e gramatical, à língua "construída" durante séculos de elaboração contínua para ser utilizada como língua do poder político e cultural. Por isto ele aponta o "bom uso" lingüístico da corte e alerta contra as possíveis influências negativas de proveniência plebéia.
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A distância entre a língua codificada na gramática e a realidade da variação devia ser enorme já na época em que a associação entre uma variedade e a escrita, antes, e a tradição gramatical, depois, foram realizadas. M. Bakhtin-V. Voloshinov aponta as relações entre a sistematização formalista e a produção cultural:
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Os criadores - iniciadores de novas correntes ideológicas - nunca sentem necessidade de formalizar sistematicamente. A sistematização aparece quando nos sentimos sob a dominação de um pensamento autoritário aceito como tal. É preciso que a época de criatividade acabe: só aí é que então começa a sistematização-formalização; é o trabalho dos herdeiros e dos epígonos dominados pela palavra alheia que parou de ressoar. A orientação da corrente em evolução nunca pode ser formalizada e sistematizada. Esta é a razão pela qual o pensamento gramatical formalista e sistematizante desenvolveu-se com toda plenitude e vigor no campo das línguas mortas e, ainda, somente nos casos em que essas línguas perderam, até certo ponto, sua influência e seu caráter autoritário sagrado. A reflexão lingüística de caráter formal-sistemático foi inevitavelmente coagida a adotar em relação às línguas vivas uma posição conservadora, isto é, a tratar a língua viva como se fosse algo acabado, o que implica uma atitude hostil em relação a todas as inovações lingüísticas. (1979: 89)

(...)

GNERRE, Maurizzio. Linguagem, Escrita e Poder. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 7-12.
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NOTA: este livro de Maurizzio Gnerre é excelente. Muito bem fundamentado e crítico, o sociolingüista aborda o pointo central da formação de um "padrão" de língua, o que tem muito a ver com o modelo de sociedade atual, relações de poder e discurso(s). Foi uma das melhores postagens de 2007...

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