Creio que não existe nada de mais belo, de mais profundo, de mais simpático, de mais viril e de mais perfeito do que o Cristo; e eu digo a mim mesmo, com um amor cioso, que não existe e não pode existir. Mais do que isto: se alguém me provar que o Cristo está fora da verdade e que esta não se acha n'Ele, prefiro ficar com o Cristo a ficar com a verdade. (Dostoievski)

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29 de abr. de 2008

Análise do Discurso

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Na história da reflexão sobre a linguagem, a AD [Análise de Discurso] aparece como uma forma de conhecimento cisionista. Ela se constrói não como uma alternativa para a Lingüística - que é a ciência positiva que descreve e explica a linguagem verbal humana - mas como proposta crítica que procura justamente problematizar as formas de reflexão estabelecidas.
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Assim, ao mesmo tempo em que pressupõe a Lingüística, a AD abre um campo de questões no interior da própria Lingüística e que refere o conhecimento da linguagem ao conhecimento das formações sociais.
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Daí resulta o que podemos chamar seu "nomadismo". Não há um acúmulo científico fixo, no que diz respeito à teoria, à definição de seu objeto e método(s): a cada passo a AD redimensiona seu objeto, reavalia aspectos teóricos e se relaciona criticamente com seu(s) método(s).
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É essa sua condição de existência crítica que a torna mais fecunda. Nem poderia deixar de ser assim, para uma forma de conhecimento que, como diz Foucault (1969), se propõe "fazer uma história dos objetos discursivos que não os interasse na profundidade comum de um solo originário, mas desenvolvesse o nexo das regularidades que regem sua dispersão". O fragmentário, o disperso, o incompleto, o não-transparente. Eis o domínio da reflexão discursiva.
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Crítica ao mesmo tempo ao objetivismo abstrato (que advoga a onipotência do sistema, o da autonomia da língua) e ao subjetivismo idealista (em que domina a onipotência do sujeito e do território-livre da fala) a AD assume a posição de que se deve pensar um objeto ao mesmo tempo social e histórico, em que se confrontam sujeito e sistema: o discurso.
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Desse modo, embora pressuponha a Lingüística, se distingue dela em pontos cruciais, pois não é nem uma teoria descritiva, nem uma teoria explicativa. A AD se pretende uma teoria crítica que trata da determinação histórica dos processos de significação. Não estaciona nos produtos como tais. Trabalha com os processos e as condições de produção da linguagem. Condiciona, por isso, a possibilidade de se encontrarem regularidades à remissão da linguagem à sua exterioridade (condições de produção).
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Ao colocar como fundamental o fato de que há uma relação necessária da linguagem com o contexto de sua produção, a AD tem de articular-se sobre o campo das ciências sociais sem deixar de constituir sua unidade no interior da teoria lingüistica. Nela se juntam, pois, com alguma especificidade, a(s) teoria(s) das formações sociais e a(s) teoria(s) da sintaxe e da enunciação.
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Em relação às ciências humanas, por sua vez, a AD tembém propõe um deslocamento no tratamento do texto: este se apresenta como monumento e não como documento.
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Este seu deslocamento em relação às Ciências Humanas, consiste por seu lado, na recusa da chamada Análise de Conteúdo clássica: aquela que toma o texto apenas como pretexto e o atravessa só para demonstrar o que já está definido a priori pela situação. Na Análise de Conteúdo o texto aparece como documento, que se toma só como ilustração da situação em que foi produzido, situação esta já constituída e caracterizada de antemão. A AD faz justamente o movimento contrário: ao considerar que a exterioridade é constitutiva, ela parte do texto, da historicidade inscrita nele, para atingir o modo de sua relação com a exterioridade. Considera que, se a situação é constitutiva, ela está atestada no próprio texto, em sua materialidade (que é de natureza histórico-social).
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Tampouco se trata para a AD - como para a Hermenêutica - de encontrar, ou melhor, extrair um sentido do texto. A AD visa menos a interpretação do que a compreensão do processo discursivo. Quer dizer: a AD problematiza a atribuição de sentido(s) ao texto, procurando mostrar tanto a materialidade do sentido como os processos de constituição do sujeito, que instituem o funcionamento discursivo de qualquer texto.
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Dissemos que a AD é cisionista. A meu ver, isso se deve a dois motivos.
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Primeiro, porque numa realidade social e histórica como a nossa, em que se é obrigado a reconhecer que sempre se ocupam determinadas posições (e não outras) o conflito constitutivo das relações sociais, não se pode fazê-lo neutramente, ou seja, sob a ilusão de que não se está tomando posição nenhuma. Desse modo, a AD procura problematizar continuamente as evidências (enquanto evidências) e explicitar o seu caráter ideológico.
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Em segundo lugar, porque as críticas que se voltam contra a AD constituem formas contínuas de anexação e de revisão de sua capacidade explicativa. Também quanto à AD, a "Razão Ocidental (razão jurídica, religiosa, moral e política, tanto quanto científica) não consentiu (...) em concluir um pacto de coexistência pacífica (...) senão sob a condição de anexá-la às suas próprias ciências ou a seus próprios mitos..." (Althusser em: Marx e Freud, Freud e Lacan, Graal, Rio 1984).
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Assim também a AD é objeto de tentativas de anexação por parte da Lingüística, representada pela Pragmática (integrada), pelas Teorias da Enunciação ou pelas considerações da Argumentação (despolitizadas, sob a forma de conversação). Isto é: a AD tem relações importantes com a Pragmática, a Enunciação e a Argumentação, mas inclui, nessas relações, a consideração necessária do ideológico, ao asseverar que não há discurso sem sujeito nem sujeito sem ideologia. As tentativas de integração da Análise do Discurso tendem a apagar essa dimensão ideológica e a anexar o discursivo como um apêndice (secundário) ao lingüístico (central).
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Enquanto projeto de conhecimento, enquanto proposta de uma teoria crítica sobre a linguagem, a AD defende-se dessas "reduções" (disciplinações) através de seu cisionismo. Podemos mesmo dizer que o cisionismo é constitutivo da cientificidade da AD.
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Prática grávida de uma teoria em parte silenciosa (Althusser, id.) a AD não tem outro modo de se constituir senão pela sua desterritorialização (cf. Courtine, "Chroniques de l'oubli Ordinaire", Sediments, n.° 1, Montreal, 1986).
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Considerando a AD como um modo de aprender "as formas textuais do político", Courtine (op. cit.) dirá que ela tende a eclipsar-se, em função de um duplo apagamento: a) o encobrimento da relação de dominação política e b) o esquecimento do movimento de pensamento que analisa a dominação política.
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Segundo o mesmo autor, essa vontade de esquecimento tem sua emergência sedimentada ao mesmo tempo no terreno científico e no domínio político: a eclipse da razão crítica, que toma, na política, a forma do pragmatismo. Nas ciências humanas, de acordo com este autor, o "valor operacional, prático, instrumental da razão apaga seu valor crítico; a observação suplanta os saberes gerais; o fato desqualifica a interpretação; o especialista se levanta frente ao intelectual". Os pesquisadores "encontram a terra firma das coisas e os rigores do cálculo". O desejo de acabar com o político, diz Courtine, se encarna em uma razão disciplinar e instrumental, na renovação do positivismo.
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O texto de Courtine, na verdade, coloca-nos em estado de reflexão chamando a atenção para o que considero a questão crucial para a AD: embora, na AD, a prática preceda a teoria (em parte silenciosa), se eliminarmos da AD a concepção de trabalho teórico, perdemos a sua função crítica e não nos restará senão sua função instrumental. Esta, por sua vez, reduziria a AD ao academicismo disciplinar. Como não é esta a vocação da AD, podemos dizer que o trabalho teórico é tão constitutivo da AD quanto seu cisionismo e a inclusão necessária da reflexão sobre o ideológico.
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Eis, enfim, três fundamentos para a AD: a teoria, a crítica e a ideologia.
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Campinas, outubro de 1986.

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Eni Orlandi, em A Linguagem e seu Funcionamento - AS FORMAS DO DISCURSO. Campinas, SP: Pontes, 2006.

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