Creio que não existe nada de mais belo, de mais profundo, de mais simpático, de mais viril e de mais perfeito do que o Cristo; e eu digo a mim mesmo, com um amor cioso, que não existe e não pode existir. Mais do que isto: se alguém me provar que o Cristo está fora da verdade e que esta não se acha n'Ele, prefiro ficar com o Cristo a ficar com a verdade. (Dostoievski)

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22 de mar. de 2009

bráulia ribeiro

De como a ideologia matou Tititu


Numa sala apertada, com janelas pequenas e paredes de cal desbotadas, sentaram-se, desiludidos, índios e não-índios.

-- É sempre muito triste. -- disse-me a Lucília na volta. 

Ela tinha ido à cidade de Lábrea para a reunião do Distrito de Saúde Indígena (DISEI), da qual participavam a JOCUM e o CIMI, juntamente com órgãos públicos. Lucília sempre ora pela microcidade e por suas mazelas: corrupção, devassidão extrema, doenças, entre outras. 

Os habitantes de Lábrea têm os rostos macilentos das muitas malárias e cachaças. Falam sem convicção, parecendo não saber o que dizem. Mas sabem; só não creem mais que algo possa mudar no caos de desserviços que o governo finge prestar àquele arremedo de cidade.

-- Isto é o que mais me dói -- me diz Lucília na volta. -- Os índios baixam a cabeça como animais domesticados à custa de muita dor. O formato da reunião é excludente. Discute-se como em uma repartição pública, e os indígenas não acompanham. 

A situação Suruwahá é debatida. Lucília imagina a dificuldade dos técnicos presos no posto distante de tudo. Parece que nem visitar a aldeia eles conseguem. O medo, a pouca educação, o salário menor ainda -- os índios que se virem para chegar até o posto.

E assim foi. No dia 14 de janeiro Naru caminhou sete horas com Tititu nos braços, antes saudável, agora sem vida. A menina estava em péssimo estado e o técnico não sabia como tratá-la. Fez gestos e sons imitando um avião, para mostrar aos pais da menina que ela deveria ser retirada. A noite caiu, a menina piorou. De madrugada o corpinho esfriou e foi endurecendo aos poucos. A alma de Tititu foi para Jaxuwá, no reino onde as bananas são fartas e os peixes, grandes.

Tititu foi escolhida para morrer desde que nasceu. A ideologia que impede os Suruwahá de obter tratamento médico decente prevê que casos de deformidade congênita sejam “eliminados” no nascimento. O pai da menina recusa-se a matá-la ao ver a deformidade com que nasceu. Não conhece a ideologia, ainda se sente gente. Pede ajuda, e Lucília e Moisés conseguem retirá-la da aldeia. Com a oferta de muitos irmãos, ela vai a São Paulo para ser operada no Hospital das Clínicas. Mas a ideologia envia um procurador do Ministério Público, que proíbe a cirurgia. Os médicos ficam chocados com a proibição. A mídia divulga o caso e a pressão aumenta. O procurador desiste do impedimento e a menina é operada. Volta à aldeia, mas precisa de um medicamento mensal. Enquanto a JOCUM está presente, o remédio chega -- agitamos meio mundo, vamos para a Funasa a cada atraso. Até que a ideologia nos impede de voltar à aldeia. Nas mãos da ideologia, os índios não têm chance. Para o CIMI, a Funai e a Funasa eles não são gente. São um construto, uma abstração antropológica, um número nos gráficos. A falta do medicamento na data precisa poderia causar a morte da menina Tititu; morte já prevista, escrita, desenhada e explicada academicamente na voz estridente da ideologia.

É a inexorável força darwiniana. Tristes, imaginamos o sofrimento de Naru, o pai, e de Kusiumã, a mãe, carregando a filha na mata escura para vê-la esfriar de repente ao som de um forró desafinado no barraco de madeira do posto da Funai.


• Texto de Bráulia Ribeiro, missionária em Porto Velho, RO, e autora de Chamado Radical (Editora Ultimato). Contato: braulia_ribeiro@yahoo.com.
FONTE: Revista Ultimato mar-abr/2009.

NOTA: No discurso de abertura do Congresso da Abralin houve a citação de missões que trabalham com os índios: a antiga SIL, a ALEM e a JOCUM. Infelizmente, a visão dos linguistas que trabalham com a cultura indígena é a de que as entidades missionárias prejudicam não só os índios, mas o trabalho dos linguistas. No discurso de abertura do Congresso foi salientado que as instituições brasileiras produzem poucos linguistas que trabalham com línguas indígenas, e que, talvez devido a essa lacuna a Europa se organiza e cria fóruns de apoio ao trabalho de europeus no registro fonográfico dessas línguas. No discurso de abertura do VI Congresso da Associação Brasileira de Linguística (João Pessoa-PB, 04/03/2009), que completou 40 anos, seu fundador, Prof. Dr. Aryon D'Alligna,  o maior especialista em línguas indígenas brasileiras do mundo, frisou: os linguistas brasileiros tem dedicado pouco de seu trabalho e de seu tempo ao estudo dessas línguas. Como ressaltou o Prof. Aryon, antes que os linguistas brasileiros começassem a estudá-las, missionários protestantes chegaram ao Brasil com esse propósito, e, apesar das proibições (a missão SIL foi proibida de atuar no Brasil) as organizações missionárias continuam a trabalhar com indígenas (é o caso da ALEM e da JOCUM).  Hoje, entidades européias se organizam para obter a permissão governamental para entrar nas aldeias e registrar as línguas (gravar) a fim de estudá-las depois: registrar as línguas como objeto, coisa morta ou em vias de se deteriorar. Para mim, a questão é muito complexa. Concordo com o professor Aryon, em sua crítica à escassez de linguistas se dedicando ao estudo das línguas indígenas no Brasil. Eu mesma me dedico a outra coisa, não às línguas indígenas, e como brasileira me cobro por isso. Também concordo com ele e me preocupo com a chegada de europeus que vêm às aldeias com o único objetivo (único?) de registrar as línguas nativas, como se as aldeias, em seguida, fossem rumar para a destruição. Mas não concordo com a visão negativa das entidades missionárias, o que corrobora um pensamento antropológico purista e, quem sabe, um tanto irreal a respeito dos indígenas.  Infelizmente, para a maioria dos que se dedica ao estudo da cultura indígena brasileira, seja sob o aspecto linguista, seja sob outros, os índios não passam de objeto de estudo: eles são números, línguas, abstrações culturais e antropológicas, como salienta Bráulia Ribeiro. Não vejo como diferentes visões acerca da cultura indígena poderiam conviver harmoniosamente.

2 comentários:

Sammis Reachers disse...

Realmente é uma oportuna questão. É pena que a SIL tenha sido proibida de atuar aqui. Como você disse, é uma visão purista e primária de 'especialistas', que vêem o índio como 'objeto cultural' apenas.

Quanto a ti, penso que deveria se engajar. O campo carece de capacitados!

Um abraço

Maya Felix disse...

É, Sammis, a questão é muito complexa. Não sei se teria condições de me engajar, os especialistas começam a trabalhar em suas áreas praticamente desde a graduação e eu já estou no doutorado.


Obrigada por sua visita,

Maya

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