Creio que não existe nada de mais belo, de mais profundo, de mais simpático, de mais viril e de mais perfeito do que o Cristo; e eu digo a mim mesmo, com um amor cioso, que não existe e não pode existir. Mais do que isto: se alguém me provar que o Cristo está fora da verdade e que esta não se acha n'Ele, prefiro ficar com o Cristo a ficar com a verdade. (Dostoievski)

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18 de fev. de 2008

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O fazedor
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Nunca se tinha demorado nos prazeres da memória. As impressões resvalavam sobre ele, momentâneas e vívidas; o vermelhão de um oleiro, a abóbada carregada de estrelas que também eram deuses, a lua, de onde tinha caído um leão, a lisura do mármore sob as lentas gemas sensíveis, o sabor da carne de javali, que gostava de rasgar com dentadas brancas e bruscas, uma palavra fenícia, a sombra negra que uma lança projecta na areia amarela, a proximidade do mar ou das mulheres, o pesado vinho cuja aspereza o mel mitigava podiam abarcar por inteiro o âmbito da sua alma. Conhecia o terror, mas também a cólera e a coragem, tendo sido uma vez o primeiro a escalar um muro inimigo. Ávido, curioso, casual, sem outra lei que a do gozo e da indiferença imediata, andou pela terra vária e olhou, numa e noutra margem do mar, as cidades dos homens e os seus palácios. Nos mercados populosos ou no sopé de uma montanha de cume incerto, onde bem podia haver sátiros, tinha escutado complica­das histórias que recebeu como recebia a realidade, sem indagar se eram verdadeiras ou falsas.
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Gradualmente, o formoso universo foi-o abandonando; uma teimosa neblina confundiu-lhe as linhas da mão, a noite despovoou-se de estre­las, a terra era insegura sob os seus pés. Tudo se afastava e confundia. Quando soube que estava a ficar cego, gritou; o pudor estóico ainda não fora inventado e Heitor podia fugir sem deslustre. «Já não verei — per­cebeu — nem o céu cheio de pavor mitológico, nem esta cara que os anos transformarão.» Dias e noites passaram sobre esse desespero na sua carne, mas uma manhã acordou, olhou (já sem espanto) as indistintas coisas que o rodeavam e inexplicavelmente sentiu, como quem reconhece uma música ou uma voz, que tudo isso já lhe tinha acontecido e que o encarara com temor, mas também com júbilo, esperança e curiosidade. Então desceu à sua memória, que lhe pareceu interminável, e conseguiu tirar daquela vertigem a recordação perdida que reluziu como uma moe­da sob a chuva, talvez porque nunca a tivesse olhado, salvo, quem sabe, num sonho.
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A recordação era assim. Outra criança havia-o insultado e ele fora ter com o seu pai e tinha-lhe contado a história. Este deixou-o falar como se o não ouvisse ou compreendesse e despendurou da parede um punhal de bronze, belo e carregado de poder, que a criança tinha furtivamente cobiçado. Agora segurava-o nas mãos e a surpresa da posse anulou a injú­ria sofrida, mas a voz do pai dizia: «Que alguém saiba que és um ho­mem», e havia uma ordem na voz. A noite cegava os caminhos; abraçado ao punhal, em que pressentia uma força mágica, desceu a brusca ladeira que rodeava a casa e correu até à beira-mar, julgando-se Ájax ou Perseu e povoando de feridas e batalhas a obscuridade salobra. O que procurava era o preciso sabor daquele momento; não lhe importava o resto: as afrontas do desafio, o torpe combate, o regresso com a lâmina ensan­guentada.
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Outra recordação, em que também havia uma noite e uma iminência de aventura, brotou daquela. Uma mulher, a primeira que lhe enviaram os deuses, tinha-o esperado na sombra de um hipogeu, e ele procurou-a por galerias que eram como redes de pedra e por declives que se afunda­vam na sombra. Porque lhe chegavam essas memórias e porque lhe che­gariam elas sem amargura, como uma mera prefiguração do presente?
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Com grave assombro compreendeu. Nessa noite dos seus olhos mor­tais, onde agora descia, aguardavam-no também o amor e o risco. Ares e Afrodite, porque já adivinhava (já o cercava) um rumor de glória e de hexâmetros, um rumor de homens que defendem um templo que os deu­ses não salvarão e de baixéis negros que procuram no mar uma ilha que­rida, o rumor das Odisseias e Ilíadas que era seu destino cantar e deixar ressoando concavamente na memória humana. Sabemos estas coisas, mas não as que sentiu ao descer à última sombra.
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Jorge Luis Borges
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1899: Jorge Luis Borges nasce a 24 de agosto em Buenos Aires, filho de Jorge Guillermo Borges e Leonor Acevedo.
1986: Morre em Genebra a 14 de Julho de 1986. Pouco antes se casa com María Kodama.

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