Minha Igreja Tem Cai-Cai
por Bráulia Ribeiro, missionária da Jocum
Minha igreja é destas que tem cai-cai, estrebucho e chororô. Aos domingos, quando cai a unção, homens e mulheres, crianças e adolescentes, profissionais liberais, garis, prostitutas e doutores se misturam num carnaval maluco, sem máscaras e sem fantasia. Todos dançam e pulam; alguns desconjuntadamente; outros, como pipoca no óleo quente. Outros, ainda, movimentam-se como num balé new age bem elaborado, em que se perdem sozinhos em seu mundo de adoração, como se estivesse no seu próprio quarto. Alguns gritam – gritos viscerais, primais, enlouquecidos; outros balbuciam extasiados palavras sem sentido. Alguns apenas caem em êxtase, como se tocados por um dedo gigante, e outros ficam no chão, rindo e chorando por muito tempo.
É estranho estar no meio de tudo isto. Você se torna quase um espectador do teatro do absurdo. Por mais que se confronte com o inusitado, sempre se surpreende a cada nova pessoa tocada, a cada profissional circunspecto que de repente se vê no chão despido de qualquer vergonha na cara. No começo, era uma espécie de playcenter espiritual; queria-se reunião todos os dias, numa ânsia pelo toque sobrenatural. A unção se tornou melhor do que qualquer coisa, do que os bate-papos a que estávamos acostumados antigamente, do que as festas regadas a muita comida, que eram comuns no dia-a-dia da igreja. Queríamos a emoção de cair, de perder o controle, de sermos tomados por aquela coisa nova. Um amigo médico definiu o processo como a “cocaína espiritual”. Cocaína da qual não se sai “deprê”, mas que vicia igualmente. Cocaína que produzia cura.
Lembro-me de outro amigo, profissional respeitado na cidade, que por respeito acompanhava a mulher para a igreja anos a fio. Sincero, dizia abertamente que não era crente, sempre querendo se preservar o direito de dar umas pecadinhas sem culpa. Mas, um belo dia de unção, lá estava o sujeito no chão, rolando suas roupas de marca pelo piso sujo de um galpão. Por mais que eu quisesse me desligar da imagem dele e louvar no meu canto, não conseguia parar de olhar as reviravoltas que ele dava – ora como um capoeirista exímio, ora como um lagarto desengonçado. Toda a dureza e indiferença cínica daquele homem rompeu-se e deu lugar a um zelo intenso pelo Evangelho e confissões públicas inimagináveis.
Na época, deflagrou-se uma guerra entre os membros da denominação quando começamos a nos “viciar” naquela cocaína divina. Muitos não se conformavam com o novo modelo, e vociferavam que Deus não podia fazer coisas nem proporcionar tais manifestações. Eu, cá do meu canto, sabia que não podia decidir as coisas que Deus pode ou não fazer – primeiro, porque sou mineira, assim como disse o caboclo depois que viu o sexto elefante cor de rosa voando por cima da cabeça: “É, cumpadi, parece que o ninho deles é pra lá mermo...” O Deus que falou em coluna de fogo, que apareceu em nuvem, que derrubou muralha com buzina, que abriu e fechou mares e rios, pode continuar fazendo o que bem entende. Um Deus que, na forma de homem, curou cego cuspindo no chão, andou em cima d’água, pescou peixe com moeda na barriga, morreu na cruz e ressucitou de maneira espetacular, pode continuar fazendo o que bem entende.
Fiquei a observar os resultados. Sei que a indiferença generalizada que reinava na igreja antigamente virou entusiasmo. Sei que homens que antes passavam o tempo do culto a pensar em seus problemas ou a desnudar as mulheres com o olhar, hoje, tocados por uma compaixão estranha, choram como crianças e pregam o Evangelho com paixão. Sei que mulheres mal-amadas, endurecidas pela vida, de repente desabrocharam em flor, como a moça da janela de A Banda do Chico Buarque. No meio disso tudo, alguns de nós querem teologar em cima de experiências e desenvolvem toda uma filosofia da preservação da “unção” na igreja, carregada de proibições neuróticas e de culpa. Para se ter unção, não pode isto não pode aquilo; não pode roupa de uma determinada marca, não pode música de ritmo afro; só o que é judeu é santo, o resto pertence ao diabo – que, aliás, acaba sendo um sujeito mais criativo que o próprio Deus, que não conseguiu inventar nada além daquelas musiquinhas judaicas em tom menor.
Assim, para ter unção, dizem que o crente precisa viver fora do mundo e outras bobagens mais. E quem olha de fora, ou seja, os acadêmicos da religião, tenta racionalizar e entender cada detalhe, revestindo-se de preconceitos histórico-teológicos. Apesar de cristãos, são mais céticos do que os incrédulos. Do meu canto, observo uma mulher de vida difícil levantar-se do banco ir ao altar pela primeira vez, querendo ver a Jesus e sendo tocada por uma mão sobrenatural de amor que a faz chorar e rir durante horas. Naquele choro, sua alma é lavada, suas culpas freudianas são extirpadas, sua sensação de miséria interna se torna em valor precioso. E ela levanta dali numa inteireza que duzentas horas de sermão não produziriam.
Edgar Morin, grande filósofo da educação, fala sobre cegueiras paradigmáticas. Segundo ele, “um paradigma pode, ao mesmo tempo, elucidar e cegar, revelar e ocultar. É no seu seio que se esconde o problema-chave do jogo da verdade e do erro”. Ou seja, por ficarmos viciados num tipo de paradigma lógico, não conseguimos pensar fora dele, nem muitas vezes analisar coerentemente fatos do mundo ao nosso redor. No entanto, não somos capazes de perceber esse erro porque estamos presos na falsa lógica produzida pelos axiomas em que acreditamos.
O grupo de lá, conservador e racional, primando pelo amor à Palavra, ignora o lado místico da fé, sem o qual a própria fé deixa de ter sentido. Perde a oportunidade de experimentar o mover legítimo e curativo de Deus, o derramar do Espírito Santo que foge à nossa capacidade racional de explicá-lo, ultrapassa nossos limites religiosos e alcança almas e corpos com curas e prazeres que nossa teologia casta e asséptica não é capaz de gerar. Do mesmo modo que o grupo experiencialista exclui toda lógica – e, muitas vezes, todo parâmetro bíblico de sua fé –, o lado metafísico de Deus se torna ausente da lógica viciada da teologia racionalista.
A verdade é que caráter nunca será ministrado por imposição de mãos. A unção nunca substituirá a cruz a ser carregada ao longo de nossa jornada, gerando o verdadeiro cristianismo. A educação e o entendimento da Palavra nunca poderão ser relegados ao segundo plano; nossas mentes devem ser lavadas e transformadas pelas Escrituras, sem a qual a revelação nem existe. Mas ainda assim, a brisa suave do noivo está passando – e, quando ele passa, nosso coração amolece e nossos olhos querem chorar. Ele me ama, e eu sinto isto. É bom adorar por horas seguidas, sem olhar o relógio, e sentir-se limpo, perdoado e próximo do Senhor. É bom saber que Deus é concretamente e transcendentemente eficiente e poderoso para curar corpos, almas, dores, mágoas e teologias... E não há prazer maior que este.
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Fonte: Genizah, via: Revista Eclésia
Imagem: BBC.
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Minha crítica: Bráulia Ribeiro é sublime ao escrever. Fico emocionada quando leio seus textos: simplicidade, talento e conhecimento profundo da Palavra e da ciência humana se revelam, para sorte minha. Os textos de Bráulia Ribeiro me fazem repensar tantas coisas... Paro pra desenformar, desemoldurar e refletir. Penso à luz da Palavra e olhem a Bráulia Ribeiro, a vivência com Deus e a testificação do Espírito aí, de novo, me fazendo rever meus conceitos (e isso porque tenho ido à uma igreja que tem cai-cai...).
8 comentários:
Muito Interessante o artigo da Bráulia Maya, todavia, discordo consideravelmente de alguns pontos apresentados por ela, ou melhor, da forma como ela apresenta.
Estarei abordando isso em um futuro artigo.
Um forte abraço e Deus te abençoe!
Maya,
Apesar de não ser muito adepto ao culto cai-cai, reconheço que Bráulia está certa quando diz que temos que juntar a reflexão da Palavra com o lado místico da fé. Também aprecio os escritos dela, são muito belos.
Abraço.
Caro Victor,
Eu penso que a Bráulia Ribeiro tem uma visão muito ampla e multicultural da manifestação da espiritualidade humana em Cristo. Isso certamente vem de sua formação missionária (missões transculturais). Eu concordo com ela, sabe? Enquanto alguns evocam as tradições judaicas, sobretudo na nossa Assembleia e nas igrejas pentecostais históricas e nas neopentecostais, outros resistem com os moldes alemães e suíço-alemães da Reforma, nas igrejas protestantes tradicionais. Os ritos, a maneira de elaborar o discurso, a musicalidade, enfim, tudo é mantido muito próximo dos pais do protestantismo calvinista. O que Bráulia faz é re-ler esses fenômenos malvistos. Eu, que tenho frequentado uma igreja onde tem "cai-cai", ainda estou meio reticente, mas o espírito testifica que o acontece ali é bom!
Um abraço, estou aguardando seu artigo!
Maya
:)
Caro Juber,
É verdade, ela escreve muito bem. Acho que seu texto tem uma visão muito ampla da questão cultural. Veja, os cultos afros não são ruins em si. São ruins pelas divindades que evocam. Mas a musicalidade, a expressão corporal e as coreografias são culturais. Estive em igrejas na África e lá se dança no batuque, mas no contexto cristão da nova vida. Assim como os celtas usavam seus instrumentos para suas divindades pagãs mas depois isso foi adaptado para o cristianismo. Como isso está muito longe de nós, não vemos mal nisso. Aprovamos a herança alemã dos órgãos, do cravo bachiano, mas reprovamos os instrumentos de percussão africanos. Por que? O que nos incomoda é a manifestação afetiva? O extravasar de emoções? Imagine, Davi há quase 3 mil anos já batucava lá com pandeiros, saltérios, dançando na frente da arca, do seu povo, seguindo a multidão, e nós não achamos ruim... Aí quando acontece ali na favela a gente começa a julgar... Ô herança européia-humanista! E olha que Jesus era semita, moreno, pele queimada de sol, e nunca teve olhos azuis... Este texto me abriu os olhos!
Um abraço,
Maya
:)
Amei o texto...
Faz tempo que venho pregando algo parecido por meio de revelação mental.
Mas no último sábado, no retiro dos jovens, o exegeta Pr Julio foi mortalmente ferido...e da ferida está sendo parido julio, o adorador.
Um abraço.
Caro Pastor,
É, eu acho que o mover de Deus se renova sempre, nós é que não queremos ver, muitas vezes.
Fico feliz pelo exegeta estar se enfraquecendo e o adorador nascendo!!! Amém! Isso tem que acontecer comigo também!
Grande abraço,
Maya
:)
Depois do "cai-cai" vem o "muuu muuu, o auuu auuu, o piu piu..."
veja este vídeo:
http://www.tangle.com/view_video.php?viewkey=c721f6fc8a6aa6665a78
e depois do "muuu muuu" vem este mover :
http://www.youtube.com/watch?v=EvFCI2bsajM&eurl=http%3A%2F%2Fgenizah%2Dvirtual%2Eblogspot%2Ecom%2F&feature=player_embedded
enfim, sinceramente,a cada dia sou menos pentecostal e mais reformado, o cristão tem que entender que nossa regra de fé e prática é a Palavra,não as manifestações místicas.E já adianto que não sou cessacionista, mas o que importa é o caráter de Cristo ser formado em cada cristão.
Olá... É verdade que temos que vigiar muito, mas não podemos desprezar, segundo diz o texto, o caráter místico da religião. Por outro lado, se só o misticismo for levado em conta, veremos cada vez mais crentes com caráter distorcido e operando milagres. Como disse Cristo, muitos que em seu nome fazem milagres serão apartados dele naquele dia, mas muitos que o seguem fazem parte de uma geração tardia em crer e sem fé.
Um abraço, obrigada por seu comentário.
Maya.
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