Considero esta narrativa, que li aos dez, onze anos de idade, um dos mais geniais do gênero conto de terror, ou conto fantástico, ou ainda, conto de suspense. É genial, penso eu, porque não precisa jorrar sangue em cada frase para despertar no leitor a surpresa e a expectativa diante de um final estranhamente possível. Aí está a beleza das grandes obras literárias: sugerir mais do que dizer. Deixar ao leitor a liberdade de construir e deduzir, de atribuir e concluir, sem no entanto mover a narrativa para o previsível. Além disso, o prazer da leitura não finda após os dois primeiros parágrafos. Eis aí outra característica da boa literatura: é agradável e prazerosa para quem lê.
Este é um clássico dos contos de terror. Há na internet traduções que preferiram "pata", no lugar de "garra", além de outras diferenças. particularmente, considero esta versão a mais genial. Boa leitura.
A GARRA DO MACACO
Fora, a noite estava fria e chuvosa, porém, na saleta do "chalet" de Laburnum as venezianas haviam sido fechadas e o fogo ardia, rebrilhando. Pai e filho jogavam xadrez; o primeiro, que tinha acerca do jogo idéias que implicavam alterações radicais, expunha o seu rei a perigos extremos e inúteis, provocando sempre comentários da velha dama de cabelos brancos que fazia meias plàcidamente, ao pé do fogo.
- Escuta o vento - disse o sr. White que, percebendo um erro fatal quando já era tarde, desejava amavelmente impedir que o filho o notasse.
- Estou ouvindo - respondeu o rapaz, vigiando atentamente o tabuleiro, enquanto o pai estendia a mão. - Xeque!
- Custa-me crer que ele venha esta noite - continuou o velho, conservando a mão no xadrez.
- Mate! - acrescentou o filho.
- É o mal de morarmos tão longe - tornou o sr. White;
com violência súbita e não reprimida. - De todos os sítios imundos, lamacentos e isolados, este é o pior. A estrada é um charco e a rua, uma torrente. Não sei o que esta gente pensa disto. Mas como só duas casas da estrada são de aluguel, suponho que pouco se lhe dá.
- Pouco importa, querido - observou a esposa com meiguice - talvez ganhes a próxima partida.
O sr. White levantou os olhos a tempo de perceber um olhar de inteligência entre a mãe e o filho. As palavras morreram-lhe nos lábios e ele disfarçou uma careta, na barba espessa e grisalha. - Aí está ele - anunciou Herberto White, ouvindo o portão bater violentamente; passos pesados aproximaram-se da casa.
O ancião levantou-se, com uma solicitude hospitaleira e, abrindo a porta, acolheu com lamentações o visitante que se queixou também. O sra. White interveio, conciliadora.
- Isso passa! Passa!
E tossiu, quando o marido entrou na peça, seguido por um homem alto e corpulento, de olhos pequenos e faces coradas.
O militar trocou apertos de mão e, tomando a cadeira ao pé do fogo que lhe era oferecida, deitou alegremente um olhar à roda, enquanto o seu hospedeiro trazia whisky e cálices e punha uma chaleirinha de cobre no fogo.
- Primeiro o sargento Morris - disse o velho, apresentando-o.
Ao terceiro copo, os olhos do sargento já reluziam e ele principiou a falar; a família observava com o maior interesse esse visitante de terras afastadas que, recostado aos ombros largos na cadeira, falava de cenas selvagens e feitos destemi· dos, de guerras, de misérias e de povos estranhos.
- Há vinte e um anos - disse o sr. White, voltando-se para a esposa e o filho - quando ele partiu, era uma flor da mocidade no quartel. Olhem-no agora.
- Não me parece que tenha mudado muito - observou cortesmente a sra. White.
- Gostaria de ir à Índia - tornou o ancião - só para ver alguma coisa com os meus olhos.
Está melhor aqui - afirmou o oficial, meneando a cabeça.
Gostaria de conhecer esses templos antigos, os faquires e os pelotiqueiros - continuou o sr. White. - Que me disse, dias atrás, da garra de macaco ou coisa semelhante, Morris? - Nada - apressou-se a responder o soldado. - Nada que valha a pena ouvir.
Garra de macaco? - perguntou a sra. White com curiosidade.
Bom; é talvez um pouco do que se pode chamar magia - respondeu evasivamente o militar.
Os três ouvintes curvaram-se com interesse. O visitante levou distraidamente o copo aos lábios e depois soltou-o. O sr. White tornou-o a encher.
- Reparem - principiou o sargento, esquadrinhando os bolsos - eis uma simples garra de macaco mumificada.
E exibiu o que tirara do bolso. A sra. White recuou com uma careta, mas o filho apanhou o curiosidade.
- E que há de especial nisso? – indagou o Sr. White, tomando-o das mãos do filho e pousando-o na mesa, depois de o observar.
- Foi encontrado por um velho faquir - explicou o sargento - um velho honrado, que queria demonstrar que o destino rege a vida do homem e que, contrariando-o, o homem só acarreta a própria desgraça. Ele encantou este objeto de modo que três pessoas poderão satisfazer por meio dele três desejos cada uma.
O tom de Morris era tão solene, que impressionou os seus hóspedes.
- E por que não fez os seus pedidos, senhor - perguntou Herberto White habilmente.
O militar encarou-o, como na Idade Média se costumava olhar um rapazote presunçoso, e replicou com calma:
- E os fiz.
Mas o rosto se lhe tornou lívido.
E os três desejos foram satisfeitos? - indagou a sra. White.
- Sim - respondeu o sargento, batendo o copo contra os dentes.
- E mais alguém manifestou três desejos? - insistiu a senhora.
- O primeiro possuidor manifestou três desejos - disse Morris. - Sim; não sei quais foram os dois primeiros, mas o último foi a morte. Eis como esta garra me chegou às mãos.
O seu tom era tão grave, que o grupo se conservou silencioso.
- Se lhe satisfez os seus três desejos já não lhe serve, Morris - observou o ancião. - Por que a conserva?
O soldado meneou a cabeça.
- Capricho, suponho - disse lentamente. - Pensei em vendê-la; não sei, porém, se devo. Já causou bastante transtornos. Aliás, ninguém a compraria: uns consideram uma fábula e os que acreditam querem primeiro experimentá-la e depois pagar-me.
- Se tivesse outros três desejos - perguntou o sr. White encarando-o - seriam satisfeitos?
- Não sei - replicou o sargento. - Não sei.
E, apanhando a garra entre o polegar e o indicador, deitou-a às chamas. White curvou-se, com um grito, e retirou-a.
- É melhor que a deixe queimar - disse solenemente o soldado.
- Se não a quer, Morris - propôs o velho - deixe-a comigo.
- Não - tornou rispidamente o sargento. - Deite-a ao fogo. Se apanhou, não me culpe, caso lhe aconteça alguma coisa. Atire-a outra vez às chamas, como homem sensato.
White meneou a cabeça e, examinando atentamente a sua nova propriedade, indagou:
- Como se usa?
- Levante-a na mão direita e diga o que deseja em voz alta - explicou o sargento - mas eu o avisei das conseqüências.
- Lembra as "Noites árabes" - disse a sra. White, levantando-se e começando a servir a ceia. - Crê que eu possa pedir para mim quatro pares de mãos?
O ancião tirou do bolso o talismã e os três riram-se; mas o sargento, preocupado, segurou o braço do velho.
- Se quiser formular algum desejo - disse ele rapidamente - peça alguma coisa razoável.
White tornou a guardar a garra no bolso e, dispondo as cadeiras, chamou o amigo para a mesa.
Durante a ceia, o talismã foi esquecido; mais tarde, pais e filho escutaram atentamente a segunda narração das aventuras do militar na Índia.
- Se a lenda da garra de macaco não for mais verídica do que as que ele nos contou - disse Herberto, mal a porta se fechou atrás do hóspede, que partira para apanhar o último trem - não nos servirá muito.
- Deu-lhe alguma coisa? - indagou a sra. White, encarando o marido.
- Uma bagatela - replicou ele, corando. - Morris não queria, mas eu o obriguei a aceitar. Ele insistiu, para que eu devolvesse a garra.
- Está visto - disse Herberto, com fingido horror. Bem, agora seremos ricos, famosos e felizes. Para começar peça que o faça imperador, pai; só assim não será governado.
E o rapaz correu em redor da mesa, perseguido pela sra. White que, ofendida, se armara de uma almofada.
O sr. White tirou do bolso o talismã e observou-o com ar de dúvida.
- Na verdade não sei o que hei de pedir - disse ele lentamente. - Parece-me que tenho tudo que desejo.
- Se pudesse mudar-se, julgar-se-ia completamente feliz! - observou Herberto, pousando a mão no ombro do pai. - Pois bem, peça duas mil libras, então; é o quanto basta.
Sorrindo da própria credulidade, White ergueu o talismã e o rapaz, obedecendo em parte a um olhar da mãe, sentou-se ao piano, com ar muito sério, e fez soar alguns acordes solenes.
- Desejo duas mil libras - disse distintamente o ancião.
Um belo acorde saudou as palavras e foi interrompido por um grito de White. A esposa e o filho correram para ele.
- Moveu-se! - bradou o velho, deitando um olhar de repugnância ao objeto que jazia no chão. - Quando fiz o pedido, agitou-se como uma serpente!
- Contudo, não vejo o dinheiro - disse o rapaz, levantando o talismã e pondo-o na mesa - e aposto que nunca o verei.
- Foi decerto uma fantasia - observou a sra. White fitando ansiosamente o marido.
O velho meneou a cabeça.
- Não importa; não me causou nenhum dano; mas, apesar de tudo, tive um choque.
Sentaram-se os três ao pé do fogo e os dois homens acabaram de fumar o cachimbo. Fora, o vento se tornava mais violento e o ancião estremeceu, ouvindo bater a porta no andar superior.
Um silêncio estranho e deprimente recaiu sobre o grupo que ali permaneceu, até que o casal se levantou, para se deitar.
- Espero que encontre o dinheiro num saco enorme no meio da cama - disse Herberto, desejando-lhes boa-noite - e alguma coisa horrível espreitando-os em cima do guarda-roupa, para vê-los embolsarem esse lucro mal ganho.
O rapaz sentou-se sozinho, na escuridão, olhando o fogo e vendo nas labaredas caretas estranhas; a última era tão horrível, tão simiesca, que o assustou. E parecia tão viva, que, com uma risada contrafeita, Herberto apanhou na mesa um copo com um pouco de água e o entornou na visão. Executando esse gesto, sentiu sob os dedos a garra do macaco; arrepiado, limpou a mão no casaco e subiu para o seu quarto.
Na manhã seguinte, à luz do sol de inverno que clareava a mesa de refeição, Herberto zombou do próprio receio. Reinava na peça uma atmosfera de salubridade prosaica que faltava na noite anterior, e a garra enrugada jazia no guarda-louças com uma indiferença que não demonstrava grande fé nas suas virtudes.
- Desconfio que todos os velhos soldados são iguais disse a sra. White. - Que idéia a nossa de darmos ouvido a esse absurdo! Como pode o desejo de alguém ser satisfeito num tempo destes? E, se fosse possível, que prejuízo nos trariam duas mil libras?
- Podem cair-lhe do céu na cabeça – observou o frívolo Herberto.
- Morris disse que a coisa sucede de maneira tão natural - replicou o velho - que se pode crer facilmente numa coincidência.
- Bem; não toque no dinheiro enquanto eu não voltar - tornou Herberto, levantando-se. - Receio que essa riqueza o torne avarento, pai, e que sejamos obrigados a renegá-lo.
A mãe riu-se e acompanhou-o até a rua; depois, voltando para a mesa, zombou da credulidade do marido. Entretanto, três horas depois não deixou de correr ao portão, quando o carteiro bateu, e de maldizer das tolices do velho militar, ao ver que o correio só lhe trazia a conta do alfaiate.
- Quando voltar, Herberto fará mais alguma das suas observações irônicas - disse ela, sentando-se à mesa, com o marido para almoçar.
Também creio - replicou o Sr. White, servindo-se de cerveja – mas apesar de tudo, a garra moveu-se; poderia jurá-lo.
- Foi impressão - disse a velha senhora, com bondade.
- Garanto que se mexeu – retrucou ele. – Eu não pensava nisso. Tinha juntamente... Que há?
A velha dama não replicou. Observava os movimentos misteriosos dum homem que, do lado de fora, se dirigia para a casa, com ar indeciso e aparentemente relutava em entrar. Ligando-o às duas mil libras, ela notou que estava bem trajado e usava um moderno chapéu de seda. O desconhecido parou três vezes diante do portão, continuou e, decidindo de súbito, abriu-o e adiantou-se no atalho. Ao mesmo tempo, a sra. White levou as mãos à pressa às tiras do avental, escondeu essa peça de vestuário atrás da almofada da cadeira.
Em seguida introduziu na sala o visitante, visivelmente perturbado. Olhando de soslaio a velha senhora, ele ouviu com ar despreocupado as desculpas pelo aspecto da peça e pelo trajo do marido, um casaco que o sr. White usava geralmente no jardim.
A dona da casa esperou depois tão pacientemente quanto lhe permitia o seu sexo, que o recém-chegado expusesse o motivo de sua visita; mas, a princípio, ele se mostrou estranhamente silencioso.
- Fui encarregado... - começou afinal.
Calou-se, porém, e tirou do bolso um embrulho. - Venho da parte da firma "Maw & Meggins".
A velha dama teve um sobressalto.
- Assunto importante? - perguntou ela, ofegando. - Sucedeu alguma coisa a Herberto? Que foi? Que foi?
- Sossegue, mulher - interveio apressadamente o marido. - Sente-se e não precipite as conclusões. Tenho certeza de que o senhor não traz más notícias - acrescentou, fitando ansiosamente o estranho.
- Lamento ... – principiou este.
- Ele está ferido? atalhou a mãe, com veemência.
O desconhecido anuiu.
- Gravemente ferido - disse com tristeza - porém não sofre mais.
- Oh, graças a Deus! - exclamou a senhora, juntando as mãos. - Graças a Deus, por isso! Graças ...
Mas interrompeu-se de súbito, percebendo o significado sinistro dessa afirmação, e leu, na cabeça curvada do visitante, a confirmação terrível do próprio receio.
Com a respiração suspensa, voltou-se para o marido desanimado e pousou a mão trêmula na dele.
- Foi apanhado pela máquina - murmurou enfim o visitante.
- Apanhado pela máquina - repetiu White automaticamente. - Sim.
O velho sentou-se, a olhar, aturdido, pela janela e, tomando entre as suas as mãos da esposa, apertou-as como nunca fizera durante o noivado, quarenta anos antes.
- Era o único que nos restava - disse ele voltando-se cortesmente para o visitante. - É triste.
O outro tossiu e, levantando-se, aproximou-se da janela. - A firma encarregou-me de lhes transmitir os seus pêsames sinceros, por essa grande perda - disse ele, sem olhar em torno de si. - Rogo-lhes que compreendam que sou apenas um empregado da casa e obedeço ordens.
Não recebeu resposta; a velha senhora tinha as faces lívidas, os olhos fixos e a respiração imperceptível; o rosto do sr. White tomara uma expressão igual talvez à do seu amigo sargento, no primeiro combate.
- Devo dizer que a firma "Maw & Meggins" se exime de toda responsabilidade - continuou o outro. - Não admite que houvesse risco; mas, em consideração aos serviços prestados por seu filho, deseja presenteá-los com uma soma em dinheiro, a título de indenização.
O sr. White soltou a mão da mulher e, erguendo-se, deitou ao visitante um olhar de horror. E, com os lábios secos mal pôde articular a palavra:
- Quanto?
- Duas mil libras - respondeu o outro.
Sem ouvir o grito da esposa, o velho sorriu fracamente, estendeu as mãos como um cego e caiu, sem sentidos, no chão.
No imenso cemitério novo a duas milhas de distância aproximadamente, o velho casal enterrou o seu querido morto e voltou para casa, por um caminho sombrio e silencioso.
Isso foi tudo o que a princípio eles conseguiram entender; e ficaram em expectativa, como se ainda estivesse para acontecer alguma coisa... alguma coisa que explicasse esse mistério muito pesado para os seus velhos corações.
Mas os dias passaram e a expectativa cedeu o lugar à resignação - a resignação dos velhos, unida, às vezes, à apatia. Os dois esposos mal trocavam uma palavra, pois nada tinham a dizer; e os dias passavam longos e tristes.
Cerca duma semana depois, acordando de súbito durante a noite, White estendeu a mão e encontrou-se só. O quarto estava escuro e da janela vinha um som de choro triste e abafado.
O ancião ergueu-se da cama e escutou.
- Venha cá - disse ele com ternura. - Sentirá frio.
- Está mais frio para o seu filho - respondeu-lhe a mulher.
E saiu do quarto.
O som de seus soluços enfraqueceu aos ouvidos do ancião. A cama estava quente e as pálpebras lhe pesavam de sono. Ele tornou a adormecer e dormiu, até que um grito selvagem da esposa o acordou num sobressalto.
- A garra! - bradou ela. - A garra do macaco!
White levantou-se assustado.
- Onde? Onde? Que há?
A velha adiantou-se para ele, tropeçando no quarto. - Quero-a - disse calmamente. - Não a destruiu?
- Está na sala na estante - replicou ele admirado. Por quê?
Ela riu-se e gritou ao mesmo tempo e, curvando-se, beijou as faces do marido.
- Só agora pensei nisso - disse, muito excitada. - Por que não pensou você nisso?
- Pensar em que? - indagou White.
- Os outros dois desejos! - replicou ràpidamente a velha senhora. - Só exprimimos um.
- Não foi bastante? - retrucou ele vivamente.
- Não! - exclamou ela, em tom de triunfo. - Teremos mais um. Desça, procure-a já e peça para que o nosso filho ressuscite!
O velho sentou-se na cama e afastou do corpo trêmulo os cobertores.
- Bom Deus! Você está louca! - exclamou assustado.
- Procure-a! - rogou ela. – Procure-a duma vez e peça! Oh, meu filho, meu filho!
Apanhando um fósforo, White acendeu uma vela e disse, em tom irresoluto:
- Deite-se. Não sabe o que está dizendo!
- O nosso primeiro desejo foi satisfeito - tornou a sra. White, com fervor - por que não será o segundo?
- Uma coincidência - balbuciou o velho.
- Desça, procure-a e exprima o seu desejo! - bradou ela trêmula de excitação.
O marido voltou-se, e fitou-a; a voz tremeu-lhe:
- Ele morreu há dez dias: aliás... eu não lhe quis dizer mas... só pude reconhecê-lo pela roupa. E, se estivesse demasiado horrível, para que você o visse?
- Traga-o! - bradou ela, impelindo-o para a porta. Julga que receio o filho que criei?
White saiu da escuridão, dirigiu-se para a saleta e depois para a lareira. O talismã estava no mesmo lugar e o ancião sentiu-se tomado dum receio terrível de que o desejo, embora não formulado, lhe trouxesse o filho mutilado, antes que ele pudesse sair da peça; conteve a respiração, compreendendo que esquecera o caminho do quarto. A testa cobriu-se de suor frio; rodeando a mesa e apalpando a parede, achou-se no corredor estreito, com o objeto tremendo na mão.
Entrando no quarto, notou que o rosto da esposa se alterara; estava lívido e ansioso e parecia ter uma expressão sobrenatural que o assustou. Ele receou-a.
- "Deseje" - ordenou ela, em tom autoritário.
- Isso é absurdo e ímpio - balbuciou o ancião.
- Deseje! - repetiu a velha senhora.
White levantou a mão e articulou:
"Desejo que o meu filho ressuscite!"
O talismã caiu ao chão e o velho fitou-o, receoso. Depois deixou-se cair numa cadeira, enquanto a mulher, com os olhos ardentes, se encaminhava para a janela e abria a persiana.
O sr. White continuou sentado, até sentir-se gelado de frio, fitando de espaço a espaço o vulto da companheira que olhava pela janela. Ardendo no fundo do castiçal de porcelana, o toco de vela refletia sombras móveis no teto e nas paredes; de súbito, com um estremecimento mais forte do que os anteriores, apagou-se. Com uma sensação inexplicável de alívio, por ver que o talismã falhara, o ancião voltou para a cama; um ou dois minutos depois, a esposa, silenciosa e apática, se aproximou dele. Nenhum dos dois falou; permaneceram ambos calados escutando o tic-tac do relógio. Um degrau estalou e um rato passou, correndo, junto da parede. A escuridão acabrunhava-os. Depois de estimular algum tempo a própria coragem, o ancião apanhou a caixa de fósforos e, acendendo um, desceu à procura duma vela.
Ao pé da escada, o f6sforo apagou-se e White parou, a fim de acender outro. Nesse momento, uma batida furtiva, pouco audível, soou na porta da frente. Os fósforos caíram da mão do velho e espalharam-se no corredor. Ele ficou imóvel, com a respiração suspensa, até que tornou a ouvir a mesma batida. Um terceiro golpe ecoou em toda a casa.
- Que é isso - bradou a velha senhora, erguendo-se.
- Um rato - respondeu White, com a voz trêmula.
A senhora sentou-se na cama e escutou.
Outro golpe se fez ouvir igualmente em toda a casa.
- É Herberto! - exclamou a velha. - É Herberto!
E correu para a porta; o marido, porém, já estava diante dela e, apanhando-lhe o braço, segurou-a com força.
- Que está fazendo? - murmurou em voz rouca.
- É meu filho; é Herberto! - bradou ela, debatendo-se. - Esqueci-me de que havia duas milhas de distância. Por que me segura? Larga-me! Preciso abrir a porta.
- Pelo amor de Deus, não faça isso! - exclamou o ancião, estremecendo.
- Você receia de seu próprio filho! - retrucou ela, continuando a se debater. - Deixa-me ir! Já vou, Herberto; já vou!
Ouviu-se um golpe, seguido de outro. Com um movimento rápido, a velha livrou-se e saiu, correndo, do quarto. O marido seguiu-a ao patamar, chamou-a pelo nome, e viu-a precipitar-se escada abaixo. E logo a voz da pobre mãe soou, arquejante:
- O ferrolho! - bradou ela. - Desça; não posso alcançar.
Mas White, ajoelhado, apalpava o chão à procura da garra. Se a pudesse apanhar, antes que o ser que estava do lado de fora entrasse!
Uma saraivada de golpes ressoou na casa toda e o ancião estremeceu, ao rumor da cadeira que a mulher arrastava no corredor, para tirar o ferrolho. Ouviu-se o ranger, puxado lentamente. Nesse momento, porém, os seus dedos toparam com a garra do macaco e ele formulou o último desejo.
As pancadas cessaram de súbito, embora o eco ainda soasse dentro da casa. White ouviu o arrastar da cadeira e a porta abriu-se. O vento frio engolfou-se na escada; um gemido de desespero, de decepção da esposa, animou o velho a correr até a porta e olhar para fora.
Na calçada oposta, o lampião clareava a rua deserta e silenciosa.
- Estou ouvindo - respondeu o rapaz, vigiando atentamente o tabuleiro, enquanto o pai estendia a mão. - Xeque!
- Custa-me crer que ele venha esta noite - continuou o velho, conservando a mão no xadrez.
- Mate! - acrescentou o filho.
- É o mal de morarmos tão longe - tornou o sr. White;
com violência súbita e não reprimida. - De todos os sítios imundos, lamacentos e isolados, este é o pior. A estrada é um charco e a rua, uma torrente. Não sei o que esta gente pensa disto. Mas como só duas casas da estrada são de aluguel, suponho que pouco se lhe dá.
- Pouco importa, querido - observou a esposa com meiguice - talvez ganhes a próxima partida.
O sr. White levantou os olhos a tempo de perceber um olhar de inteligência entre a mãe e o filho. As palavras morreram-lhe nos lábios e ele disfarçou uma careta, na barba espessa e grisalha. - Aí está ele - anunciou Herberto White, ouvindo o portão bater violentamente; passos pesados aproximaram-se da casa.
O ancião levantou-se, com uma solicitude hospitaleira e, abrindo a porta, acolheu com lamentações o visitante que se queixou também. O sra. White interveio, conciliadora.
- Isso passa! Passa!
E tossiu, quando o marido entrou na peça, seguido por um homem alto e corpulento, de olhos pequenos e faces coradas.
O militar trocou apertos de mão e, tomando a cadeira ao pé do fogo que lhe era oferecida, deitou alegremente um olhar à roda, enquanto o seu hospedeiro trazia whisky e cálices e punha uma chaleirinha de cobre no fogo.
- Primeiro o sargento Morris - disse o velho, apresentando-o.
Ao terceiro copo, os olhos do sargento já reluziam e ele principiou a falar; a família observava com o maior interesse esse visitante de terras afastadas que, recostado aos ombros largos na cadeira, falava de cenas selvagens e feitos destemi· dos, de guerras, de misérias e de povos estranhos.
- Há vinte e um anos - disse o sr. White, voltando-se para a esposa e o filho - quando ele partiu, era uma flor da mocidade no quartel. Olhem-no agora.
- Não me parece que tenha mudado muito - observou cortesmente a sra. White.
- Gostaria de ir à Índia - tornou o ancião - só para ver alguma coisa com os meus olhos.
Está melhor aqui - afirmou o oficial, meneando a cabeça.
Gostaria de conhecer esses templos antigos, os faquires e os pelotiqueiros - continuou o sr. White. - Que me disse, dias atrás, da garra de macaco ou coisa semelhante, Morris? - Nada - apressou-se a responder o soldado. - Nada que valha a pena ouvir.
Garra de macaco? - perguntou a sra. White com curiosidade.
Bom; é talvez um pouco do que se pode chamar magia - respondeu evasivamente o militar.
Os três ouvintes curvaram-se com interesse. O visitante levou distraidamente o copo aos lábios e depois soltou-o. O sr. White tornou-o a encher.
- Reparem - principiou o sargento, esquadrinhando os bolsos - eis uma simples garra de macaco mumificada.
E exibiu o que tirara do bolso. A sra. White recuou com uma careta, mas o filho apanhou o curiosidade.
- E que há de especial nisso? – indagou o Sr. White, tomando-o das mãos do filho e pousando-o na mesa, depois de o observar.
- Foi encontrado por um velho faquir - explicou o sargento - um velho honrado, que queria demonstrar que o destino rege a vida do homem e que, contrariando-o, o homem só acarreta a própria desgraça. Ele encantou este objeto de modo que três pessoas poderão satisfazer por meio dele três desejos cada uma.
O tom de Morris era tão solene, que impressionou os seus hóspedes.
- E por que não fez os seus pedidos, senhor - perguntou Herberto White habilmente.
O militar encarou-o, como na Idade Média se costumava olhar um rapazote presunçoso, e replicou com calma:
- E os fiz.
Mas o rosto se lhe tornou lívido.
E os três desejos foram satisfeitos? - indagou a sra. White.
- Sim - respondeu o sargento, batendo o copo contra os dentes.
- E mais alguém manifestou três desejos? - insistiu a senhora.
- O primeiro possuidor manifestou três desejos - disse Morris. - Sim; não sei quais foram os dois primeiros, mas o último foi a morte. Eis como esta garra me chegou às mãos.
O seu tom era tão grave, que o grupo se conservou silencioso.
- Se lhe satisfez os seus três desejos já não lhe serve, Morris - observou o ancião. - Por que a conserva?
O soldado meneou a cabeça.
- Capricho, suponho - disse lentamente. - Pensei em vendê-la; não sei, porém, se devo. Já causou bastante transtornos. Aliás, ninguém a compraria: uns consideram uma fábula e os que acreditam querem primeiro experimentá-la e depois pagar-me.
- Se tivesse outros três desejos - perguntou o sr. White encarando-o - seriam satisfeitos?
- Não sei - replicou o sargento. - Não sei.
E, apanhando a garra entre o polegar e o indicador, deitou-a às chamas. White curvou-se, com um grito, e retirou-a.
- É melhor que a deixe queimar - disse solenemente o soldado.
- Se não a quer, Morris - propôs o velho - deixe-a comigo.
- Não - tornou rispidamente o sargento. - Deite-a ao fogo. Se apanhou, não me culpe, caso lhe aconteça alguma coisa. Atire-a outra vez às chamas, como homem sensato.
White meneou a cabeça e, examinando atentamente a sua nova propriedade, indagou:
- Como se usa?
- Levante-a na mão direita e diga o que deseja em voz alta - explicou o sargento - mas eu o avisei das conseqüências.
- Lembra as "Noites árabes" - disse a sra. White, levantando-se e começando a servir a ceia. - Crê que eu possa pedir para mim quatro pares de mãos?
O ancião tirou do bolso o talismã e os três riram-se; mas o sargento, preocupado, segurou o braço do velho.
- Se quiser formular algum desejo - disse ele rapidamente - peça alguma coisa razoável.
White tornou a guardar a garra no bolso e, dispondo as cadeiras, chamou o amigo para a mesa.
Durante a ceia, o talismã foi esquecido; mais tarde, pais e filho escutaram atentamente a segunda narração das aventuras do militar na Índia.
- Se a lenda da garra de macaco não for mais verídica do que as que ele nos contou - disse Herberto, mal a porta se fechou atrás do hóspede, que partira para apanhar o último trem - não nos servirá muito.
- Deu-lhe alguma coisa? - indagou a sra. White, encarando o marido.
- Uma bagatela - replicou ele, corando. - Morris não queria, mas eu o obriguei a aceitar. Ele insistiu, para que eu devolvesse a garra.
- Está visto - disse Herberto, com fingido horror. Bem, agora seremos ricos, famosos e felizes. Para começar peça que o faça imperador, pai; só assim não será governado.
E o rapaz correu em redor da mesa, perseguido pela sra. White que, ofendida, se armara de uma almofada.
O sr. White tirou do bolso o talismã e observou-o com ar de dúvida.
- Na verdade não sei o que hei de pedir - disse ele lentamente. - Parece-me que tenho tudo que desejo.
- Se pudesse mudar-se, julgar-se-ia completamente feliz! - observou Herberto, pousando a mão no ombro do pai. - Pois bem, peça duas mil libras, então; é o quanto basta.
Sorrindo da própria credulidade, White ergueu o talismã e o rapaz, obedecendo em parte a um olhar da mãe, sentou-se ao piano, com ar muito sério, e fez soar alguns acordes solenes.
- Desejo duas mil libras - disse distintamente o ancião.
Um belo acorde saudou as palavras e foi interrompido por um grito de White. A esposa e o filho correram para ele.
- Moveu-se! - bradou o velho, deitando um olhar de repugnância ao objeto que jazia no chão. - Quando fiz o pedido, agitou-se como uma serpente!
- Contudo, não vejo o dinheiro - disse o rapaz, levantando o talismã e pondo-o na mesa - e aposto que nunca o verei.
- Foi decerto uma fantasia - observou a sra. White fitando ansiosamente o marido.
O velho meneou a cabeça.
- Não importa; não me causou nenhum dano; mas, apesar de tudo, tive um choque.
Sentaram-se os três ao pé do fogo e os dois homens acabaram de fumar o cachimbo. Fora, o vento se tornava mais violento e o ancião estremeceu, ouvindo bater a porta no andar superior.
Um silêncio estranho e deprimente recaiu sobre o grupo que ali permaneceu, até que o casal se levantou, para se deitar.
- Espero que encontre o dinheiro num saco enorme no meio da cama - disse Herberto, desejando-lhes boa-noite - e alguma coisa horrível espreitando-os em cima do guarda-roupa, para vê-los embolsarem esse lucro mal ganho.
O rapaz sentou-se sozinho, na escuridão, olhando o fogo e vendo nas labaredas caretas estranhas; a última era tão horrível, tão simiesca, que o assustou. E parecia tão viva, que, com uma risada contrafeita, Herberto apanhou na mesa um copo com um pouco de água e o entornou na visão. Executando esse gesto, sentiu sob os dedos a garra do macaco; arrepiado, limpou a mão no casaco e subiu para o seu quarto.
Na manhã seguinte, à luz do sol de inverno que clareava a mesa de refeição, Herberto zombou do próprio receio. Reinava na peça uma atmosfera de salubridade prosaica que faltava na noite anterior, e a garra enrugada jazia no guarda-louças com uma indiferença que não demonstrava grande fé nas suas virtudes.
- Desconfio que todos os velhos soldados são iguais disse a sra. White. - Que idéia a nossa de darmos ouvido a esse absurdo! Como pode o desejo de alguém ser satisfeito num tempo destes? E, se fosse possível, que prejuízo nos trariam duas mil libras?
- Podem cair-lhe do céu na cabeça – observou o frívolo Herberto.
- Morris disse que a coisa sucede de maneira tão natural - replicou o velho - que se pode crer facilmente numa coincidência.
- Bem; não toque no dinheiro enquanto eu não voltar - tornou Herberto, levantando-se. - Receio que essa riqueza o torne avarento, pai, e que sejamos obrigados a renegá-lo.
A mãe riu-se e acompanhou-o até a rua; depois, voltando para a mesa, zombou da credulidade do marido. Entretanto, três horas depois não deixou de correr ao portão, quando o carteiro bateu, e de maldizer das tolices do velho militar, ao ver que o correio só lhe trazia a conta do alfaiate.
- Quando voltar, Herberto fará mais alguma das suas observações irônicas - disse ela, sentando-se à mesa, com o marido para almoçar.
Também creio - replicou o Sr. White, servindo-se de cerveja – mas apesar de tudo, a garra moveu-se; poderia jurá-lo.
- Foi impressão - disse a velha senhora, com bondade.
- Garanto que se mexeu – retrucou ele. – Eu não pensava nisso. Tinha juntamente... Que há?
A velha dama não replicou. Observava os movimentos misteriosos dum homem que, do lado de fora, se dirigia para a casa, com ar indeciso e aparentemente relutava em entrar. Ligando-o às duas mil libras, ela notou que estava bem trajado e usava um moderno chapéu de seda. O desconhecido parou três vezes diante do portão, continuou e, decidindo de súbito, abriu-o e adiantou-se no atalho. Ao mesmo tempo, a sra. White levou as mãos à pressa às tiras do avental, escondeu essa peça de vestuário atrás da almofada da cadeira.
Em seguida introduziu na sala o visitante, visivelmente perturbado. Olhando de soslaio a velha senhora, ele ouviu com ar despreocupado as desculpas pelo aspecto da peça e pelo trajo do marido, um casaco que o sr. White usava geralmente no jardim.
A dona da casa esperou depois tão pacientemente quanto lhe permitia o seu sexo, que o recém-chegado expusesse o motivo de sua visita; mas, a princípio, ele se mostrou estranhamente silencioso.
- Fui encarregado... - começou afinal.
Calou-se, porém, e tirou do bolso um embrulho. - Venho da parte da firma "Maw & Meggins".
A velha dama teve um sobressalto.
- Assunto importante? - perguntou ela, ofegando. - Sucedeu alguma coisa a Herberto? Que foi? Que foi?
- Sossegue, mulher - interveio apressadamente o marido. - Sente-se e não precipite as conclusões. Tenho certeza de que o senhor não traz más notícias - acrescentou, fitando ansiosamente o estranho.
- Lamento ... – principiou este.
- Ele está ferido? atalhou a mãe, com veemência.
O desconhecido anuiu.
- Gravemente ferido - disse com tristeza - porém não sofre mais.
- Oh, graças a Deus! - exclamou a senhora, juntando as mãos. - Graças a Deus, por isso! Graças ...
Mas interrompeu-se de súbito, percebendo o significado sinistro dessa afirmação, e leu, na cabeça curvada do visitante, a confirmação terrível do próprio receio.
Com a respiração suspensa, voltou-se para o marido desanimado e pousou a mão trêmula na dele.
- Foi apanhado pela máquina - murmurou enfim o visitante.
- Apanhado pela máquina - repetiu White automaticamente. - Sim.
O velho sentou-se, a olhar, aturdido, pela janela e, tomando entre as suas as mãos da esposa, apertou-as como nunca fizera durante o noivado, quarenta anos antes.
- Era o único que nos restava - disse ele voltando-se cortesmente para o visitante. - É triste.
O outro tossiu e, levantando-se, aproximou-se da janela. - A firma encarregou-me de lhes transmitir os seus pêsames sinceros, por essa grande perda - disse ele, sem olhar em torno de si. - Rogo-lhes que compreendam que sou apenas um empregado da casa e obedeço ordens.
Não recebeu resposta; a velha senhora tinha as faces lívidas, os olhos fixos e a respiração imperceptível; o rosto do sr. White tomara uma expressão igual talvez à do seu amigo sargento, no primeiro combate.
- Devo dizer que a firma "Maw & Meggins" se exime de toda responsabilidade - continuou o outro. - Não admite que houvesse risco; mas, em consideração aos serviços prestados por seu filho, deseja presenteá-los com uma soma em dinheiro, a título de indenização.
O sr. White soltou a mão da mulher e, erguendo-se, deitou ao visitante um olhar de horror. E, com os lábios secos mal pôde articular a palavra:
- Quanto?
- Duas mil libras - respondeu o outro.
Sem ouvir o grito da esposa, o velho sorriu fracamente, estendeu as mãos como um cego e caiu, sem sentidos, no chão.
No imenso cemitério novo a duas milhas de distância aproximadamente, o velho casal enterrou o seu querido morto e voltou para casa, por um caminho sombrio e silencioso.
Isso foi tudo o que a princípio eles conseguiram entender; e ficaram em expectativa, como se ainda estivesse para acontecer alguma coisa... alguma coisa que explicasse esse mistério muito pesado para os seus velhos corações.
Mas os dias passaram e a expectativa cedeu o lugar à resignação - a resignação dos velhos, unida, às vezes, à apatia. Os dois esposos mal trocavam uma palavra, pois nada tinham a dizer; e os dias passavam longos e tristes.
Cerca duma semana depois, acordando de súbito durante a noite, White estendeu a mão e encontrou-se só. O quarto estava escuro e da janela vinha um som de choro triste e abafado.
O ancião ergueu-se da cama e escutou.
- Venha cá - disse ele com ternura. - Sentirá frio.
- Está mais frio para o seu filho - respondeu-lhe a mulher.
E saiu do quarto.
O som de seus soluços enfraqueceu aos ouvidos do ancião. A cama estava quente e as pálpebras lhe pesavam de sono. Ele tornou a adormecer e dormiu, até que um grito selvagem da esposa o acordou num sobressalto.
- A garra! - bradou ela. - A garra do macaco!
White levantou-se assustado.
- Onde? Onde? Que há?
A velha adiantou-se para ele, tropeçando no quarto. - Quero-a - disse calmamente. - Não a destruiu?
- Está na sala na estante - replicou ele admirado. Por quê?
Ela riu-se e gritou ao mesmo tempo e, curvando-se, beijou as faces do marido.
- Só agora pensei nisso - disse, muito excitada. - Por que não pensou você nisso?
- Pensar em que? - indagou White.
- Os outros dois desejos! - replicou ràpidamente a velha senhora. - Só exprimimos um.
- Não foi bastante? - retrucou ele vivamente.
- Não! - exclamou ela, em tom de triunfo. - Teremos mais um. Desça, procure-a já e peça para que o nosso filho ressuscite!
O velho sentou-se na cama e afastou do corpo trêmulo os cobertores.
- Bom Deus! Você está louca! - exclamou assustado.
- Procure-a! - rogou ela. – Procure-a duma vez e peça! Oh, meu filho, meu filho!
Apanhando um fósforo, White acendeu uma vela e disse, em tom irresoluto:
- Deite-se. Não sabe o que está dizendo!
- O nosso primeiro desejo foi satisfeito - tornou a sra. White, com fervor - por que não será o segundo?
- Uma coincidência - balbuciou o velho.
- Desça, procure-a e exprima o seu desejo! - bradou ela trêmula de excitação.
O marido voltou-se, e fitou-a; a voz tremeu-lhe:
- Ele morreu há dez dias: aliás... eu não lhe quis dizer mas... só pude reconhecê-lo pela roupa. E, se estivesse demasiado horrível, para que você o visse?
- Traga-o! - bradou ela, impelindo-o para a porta. Julga que receio o filho que criei?
White saiu da escuridão, dirigiu-se para a saleta e depois para a lareira. O talismã estava no mesmo lugar e o ancião sentiu-se tomado dum receio terrível de que o desejo, embora não formulado, lhe trouxesse o filho mutilado, antes que ele pudesse sair da peça; conteve a respiração, compreendendo que esquecera o caminho do quarto. A testa cobriu-se de suor frio; rodeando a mesa e apalpando a parede, achou-se no corredor estreito, com o objeto tremendo na mão.
Entrando no quarto, notou que o rosto da esposa se alterara; estava lívido e ansioso e parecia ter uma expressão sobrenatural que o assustou. Ele receou-a.
- "Deseje" - ordenou ela, em tom autoritário.
- Isso é absurdo e ímpio - balbuciou o ancião.
- Deseje! - repetiu a velha senhora.
White levantou a mão e articulou:
"Desejo que o meu filho ressuscite!"
O talismã caiu ao chão e o velho fitou-o, receoso. Depois deixou-se cair numa cadeira, enquanto a mulher, com os olhos ardentes, se encaminhava para a janela e abria a persiana.
O sr. White continuou sentado, até sentir-se gelado de frio, fitando de espaço a espaço o vulto da companheira que olhava pela janela. Ardendo no fundo do castiçal de porcelana, o toco de vela refletia sombras móveis no teto e nas paredes; de súbito, com um estremecimento mais forte do que os anteriores, apagou-se. Com uma sensação inexplicável de alívio, por ver que o talismã falhara, o ancião voltou para a cama; um ou dois minutos depois, a esposa, silenciosa e apática, se aproximou dele. Nenhum dos dois falou; permaneceram ambos calados escutando o tic-tac do relógio. Um degrau estalou e um rato passou, correndo, junto da parede. A escuridão acabrunhava-os. Depois de estimular algum tempo a própria coragem, o ancião apanhou a caixa de fósforos e, acendendo um, desceu à procura duma vela.
Ao pé da escada, o f6sforo apagou-se e White parou, a fim de acender outro. Nesse momento, uma batida furtiva, pouco audível, soou na porta da frente. Os fósforos caíram da mão do velho e espalharam-se no corredor. Ele ficou imóvel, com a respiração suspensa, até que tornou a ouvir a mesma batida. Um terceiro golpe ecoou em toda a casa.
- Que é isso - bradou a velha senhora, erguendo-se.
- Um rato - respondeu White, com a voz trêmula.
A senhora sentou-se na cama e escutou.
Outro golpe se fez ouvir igualmente em toda a casa.
- É Herberto! - exclamou a velha. - É Herberto!
E correu para a porta; o marido, porém, já estava diante dela e, apanhando-lhe o braço, segurou-a com força.
- Que está fazendo? - murmurou em voz rouca.
- É meu filho; é Herberto! - bradou ela, debatendo-se. - Esqueci-me de que havia duas milhas de distância. Por que me segura? Larga-me! Preciso abrir a porta.
- Pelo amor de Deus, não faça isso! - exclamou o ancião, estremecendo.
- Você receia de seu próprio filho! - retrucou ela, continuando a se debater. - Deixa-me ir! Já vou, Herberto; já vou!
Ouviu-se um golpe, seguido de outro. Com um movimento rápido, a velha livrou-se e saiu, correndo, do quarto. O marido seguiu-a ao patamar, chamou-a pelo nome, e viu-a precipitar-se escada abaixo. E logo a voz da pobre mãe soou, arquejante:
- O ferrolho! - bradou ela. - Desça; não posso alcançar.
Mas White, ajoelhado, apalpava o chão à procura da garra. Se a pudesse apanhar, antes que o ser que estava do lado de fora entrasse!
Uma saraivada de golpes ressoou na casa toda e o ancião estremeceu, ao rumor da cadeira que a mulher arrastava no corredor, para tirar o ferrolho. Ouviu-se o ranger, puxado lentamente. Nesse momento, porém, os seus dedos toparam com a garra do macaco e ele formulou o último desejo.
As pancadas cessaram de súbito, embora o eco ainda soasse dentro da casa. White ouviu o arrastar da cadeira e a porta abriu-se. O vento frio engolfou-se na escada; um gemido de desespero, de decepção da esposa, animou o velho a correr até a porta e olhar para fora.
Na calçada oposta, o lampião clareava a rua deserta e silenciosa.
***
William Wyntark Jacobs
W. W. Jacobs, nascido a 8 de setembro de 1836, foi educado em Londres, em escolas particulares. Empregou-se, ainda jovem, no serviço de fiscalização bancária, até que em 1896 surgiu com o primeiro livro - "Many Cargoes" - composto de pequenas histórias humorísticas sôbre a vida das docas, com seus estivadores, marinheiros e pescadores. É em tôrno do mesmo ambiente, explorando temas ligados ao pessoal do cais, que se desenvolvem as narrativas incluídas em obras como "Odd Craft", "Captains Ali", "The Lady of the Barge", e outras. Embora revelando originalidade e agudo senso de humor, não seriam êstes livros que popularizariam o nome de Jacobs. A glória ele iria alcançar com outra espécie de histórias - os chamados contos de horror. Tornou-se, neste gênero, um mestre incontestado. Não há antologia que dispense, atualmente, a inclusão de uma obra prima como "A Garra do Macaco", pequena história em que o fantástico se liga ao real sem jamais decair no vulgar, em que o leitor nunca pode precisar onde termina a ilusão e começa a realidade. Não menos estranha e bem conduzida é a narrativa "Que Fizestes, Caim?" e outras de idêntico "suspense", incluídas em obras como "Bis Brother's Keeper".
Além de contista, Jacobs é também teatrólogo. Numerosas comédias, a maioria em um ato - algumas em colaboração com Louis N. Parker - marcam a sua passagem pelo teatro.
W. W. Jacobs, nascido a 8 de setembro de 1836, foi educado em Londres, em escolas particulares. Empregou-se, ainda jovem, no serviço de fiscalização bancária, até que em 1896 surgiu com o primeiro livro - "Many Cargoes" - composto de pequenas histórias humorísticas sôbre a vida das docas, com seus estivadores, marinheiros e pescadores. É em tôrno do mesmo ambiente, explorando temas ligados ao pessoal do cais, que se desenvolvem as narrativas incluídas em obras como "Odd Craft", "Captains Ali", "The Lady of the Barge", e outras. Embora revelando originalidade e agudo senso de humor, não seriam êstes livros que popularizariam o nome de Jacobs. A glória ele iria alcançar com outra espécie de histórias - os chamados contos de horror. Tornou-se, neste gênero, um mestre incontestado. Não há antologia que dispense, atualmente, a inclusão de uma obra prima como "A Garra do Macaco", pequena história em que o fantástico se liga ao real sem jamais decair no vulgar, em que o leitor nunca pode precisar onde termina a ilusão e começa a realidade. Não menos estranha e bem conduzida é a narrativa "Que Fizestes, Caim?" e outras de idêntico "suspense", incluídas em obras como "Bis Brother's Keeper".
Além de contista, Jacobs é também teatrólogo. Numerosas comédias, a maioria em um ato - algumas em colaboração com Louis N. Parker - marcam a sua passagem pelo teatro.
Jacobs faleceu em 1943, durante a última grande guerra.
***
Para ler bons contos fantásticos, acesse o Blog Contos Fantásticos - Procurando divulgar o gênero fantástico na literatura, de Luiz Fernando Riesemberg, e o Blog O Conselheiro Acácio.
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